quinta-feira, julho 10, 2014

Sobre uma promoção da Samsung

1. A Samsung está a promover os seus novos ecrãs curvos (UHD TV). Tudo bem: tendo em conta as qualidades provadas e comprovadas dos seus produtos, serão, por certo, objectos altamente sofisticados (não é especialmente importante para o que se segue, mas posso referir que tenho um televisor Samsung de uma geração anterior e o meu juízo de valor sobre as suas qualidades técnicas é altamente positivo).

2. Dito isto, não me parece que a vontade legítima de promover tal produto seja uma boa razão para tratar os jornalistas como meninos de coro patetas que devem ser injectados com promoções muito "científicas", disfarçadas de "informação".

3. Falo de quê? De um mail proveniente de uma agência de publicidade (Hill+Knowlton), enviado para os mais diversos profissionais do jornalismo sob o título: 'PR - Trilogia “Senhor dos Anéis” no topo da lista dos filmes que os Europeus gostariam de ter visto no cinema‏'. Repito: "gostariam de ter visto..." — os problemas começam logo por aí, já que se aplica o tempo condicional para, depois, se tentarem impor certezas de um presente parcamente unidimensional.

4. Assim, somos informados de um "estudo da autoria da Kantar Media", precisamente no sentido de estabelecer uma lista de títulos que os europeus "gostariam de ter visto...". A lista, estranhamente, não contém nenhuma produção não ligada aos EUA, além de estar pontuada por considerações da mais pura baixeza tecnocrática. Leia-se: "Este estudo permitiu também perceber que os filmes de acção, com um orçamento de produção elevado, foram dos mais apreciados pelos entrevistados pela experiência cinematográfica imersiva que proporcionam."
Somos ainda confrontados com dissertações típicas da mais medíocre imprensa cor de rosa como: "Um em cada quatro fãs de cinema votou também em três dramas cativantes [o sublinhado é meu] que contam com a participação do actor Tom Hanks – O Resgate do Soldado Ryan, Forrest Gump e The Green Mile – À Espera de Um Milagre." As surpresas (ou a falta delas) completam-se quando nos é dito o seguinte: "O estudo pergunta aos entrevistados quais os filmes que gostariam de ter visto no cinema, independentemente de já os terem visto ou não, de um top30 de filmes realizados nos últimos 20 anos feito pelo portal de cinema IMDb.com" — enfim, definitivamente nenhuma surpresa, para mais tendo em conta o populismo grosseiro que domina o imaginário do IMDb (há dias, entre as suas maravilhas "cinéfilas", descobri mesmo uma lista, generosamente fornecida por uma visitante, dos "actores favoritos com quem eu era capaz de namorar").

5. Enfim, tudo isto seria apenas (mais) um produto da ideologia dominante do marketing que, no cinema e não só, trata os consumidores como totós que gostam de ser reduzidos a caricaturas da estupidez que, implicitamente, lhes é atribuída... Acontece que as coisas começam a complicar-se um bocadinho quando saltitamos de um parágrafo para outro. Exemplo? Deparamos com coisas deste género: "Com o novo Samsung UHD curvo não tem que sair do conforto da sua casa para ver estes grandes êxitos de bilheteira." Ah!!!... Afinal, a questão — o conteúdo, como dizem os profissionais do marketing, quase sempre sem saberem o que estão a dizer — não é exactamente o inquéritozinho, mas sim o televisorzinho...

6. Por um lado, massacram-nos com os lugares-comuns mais grosseiros que se possam imaginar sobre o cinema. O inquérito, imagine-se, até se atreve a dizer que tem respostas da "Geração X" e da "Geração Y", sem nunca nos esclarecer como é que tão interessantes conceitos se concretizam na prática específica de uma sondagem. Será que o IMDb também tem, algures, tops geracionais? — aliás, para além de um link para o site da agência, o mail nem sequer sabe tirar partido da possibilidade de nos encaminhar para sites que nos possa ajudar a contextualizar o que nele é proclamado como verdade absoluta. Por outro lado, pelo meio, vai-nos sendo insinuado que há o tal televisorzinho a ter em conta...

7. Agradeço que os mais chocados com o meu protesto evitem cair na facilidade de apontar a estas palavras qualquer sentimento anti-cinema americano. Em primeiro lugar, porque, depois de mais de quatro décadas a escrever regularmente sobre filmes, não preciso de provar o meu respeito e admiração pela fascinante diversidade da produção made in USA (escusado será dizer que vários dos filmes citados me parecem muito bons ou mesmo excepcionais). Depois, porque o que está realmente em causa, para além do americanismo simplista que contamina um discurso deste género, é essa ideia (?) segundo a qual é pertinente escolher como alvo de tão disparatada promoção os próprios jornalistas ou críticos de cinema. Seria simpático que os agentes (individuais ou empresariais) destes desmandos promocionais pensassem um bocadinho naquilo que fazem, que reflectissem por uma vez no conceito de comunicação e, enfim, que não reduzissem o mundo plural do cinema a discursos de tão clamorosa ignorância histórica e conceptual.