terça-feira, julho 22, 2014

'House of Cards':
nos bastidores da política (2)


Esta é a segunda parte de um artigo que publiquei recentemente nas páginas do suplemento Q., do DN, sobre a edição em DVD da série House of Cards. 

Se em House of Cards o poder está na mão dos democratas (norte-americanos), na origem esta foi uma ideia nascia em solo conservador. E no Reino Unido. House of Cards surgiu em 1989 como um livro de ficção assinado por Michael Dobbs, figura influente no Partido Conservador Britânico nos tempos de Margaret Thatcher e, mais tarde, elemento da direção do partido quando este esteve sob a chefia de John Major. Dobbs criou um romance político em volta da figura de um elemento da Câmara dos Comuns, deputado a quem era atribuída a tarefa de garantir que os seus colegas não só não faltassem às votações como votassem depois de acordo com as instruções do líder. A House of Cards seguiu-se To Play the King (1992) e The Final Cut (1994), trilogia que inspirou diretamente a criação de três séries televisivas produzidas pela BBC, com o ator Ian Richardson no papel protagonista de Francis Urquhart (que, por movimentações de bastidores, muitas delas envolvendo jogadas menos limpas, chega a primeiro-ministro), numa trama sinistra e que em nada se compara ao humor de Yes, Minister, outro exemplo histórico da presença do mundo político numa produção da BBC.

A adaptação britânica de House of Cards estreou-se na BBC em finais de 1990, a dois dias da escolha de um novo líder do Partido Conservador e, na sede de campanha de John Major (que seria o eleito), tudo parou para ver o episódio. No ar, com considerável aplauso da crítica, entre novembro e dezembro de 1990, a primeira série House of Cards conheceria continuação em novas épocas de produção que corresponderiam aos restantes livros de Dobbs, surgindo a adaptação de To Play the King em quatro episódios originalmente apresentados pela BBC em 1993 e The Final Cut em novo conjunto de quatro episódios estreados em 1995. A realização das duas primeiras séries foi assinada por Paul Seed, cabendo a Mike Varady a terceira. Já as figuras centrais do elenco cruzaram toda a narrativa.

Mais que os três romances de Dobbs, foram os episódios das três séries da BBC que cativaram a atenção de David Fincher, que as descobriu por alturas da rodagem de O Estranho Caso de Benjamin Button (2008). O interesse não partiu apenas da construção da narrativa mas também, como explicou ao HitFix em janeiro de 2013, de uma reflexão sobre as possibilidades que a ficção televisiva trazem ao desenvolvimento das personagens de uma forma que a duração (mais reduzida) de um filme não permite fazer. Ele mesmo ali acrescenta que há já algum tempo que vinha a notar que alguma da melhor escrita para atores estava a ser feita na ficção televisiva e que ele mesmo procurava algo para fazer em televisão. Talvez dessa procura tenha nascido também um interesse pela escrita de Aaron Sorkin, que acabaria por assinar o argumento de A Rede Social (2010), um dos mais bem escritos dos títulos da filmografia do realizador.

Quando David Fincher “descobre” House of Cards já os direitos da série tinham sido adquiridos pela Media Rights Capital, que procurava uma estação televisiva interessada em produzir uma adaptação americana desta ideia com berço britânico. A resposta com a maior licitação veio da Netflix, uma companhia fundada em 1997 e especializada em distribuição via DVD (enviado diretamente para casa dos subscritores) e entretanto com cada vez maior expressão online que pretendia lançar a sua própria produção. Já com David Fincher a bordo, a versão americana de House of Cards começou por procurar uma figura com experiência política que, tal como Dobbs no Reino Unido, conferisse à escrita um sentido de realismo e um conhecimento dos lugares onde decorre a ação. E encontraram o parceiro em Beau Willimon, que tinha já trabalhado no staff de Chuck Schummer (senador por Nova Iorque), Howard Dean (governador do estado de Vermont) e Hillary Clinton, todos eles do Partido Democrata. O núcleo duro de House of Cards encontrou a peça que faltava ao chamar Kevin Spacey, ator que assumiria o papel protagonista mas também um lugar na equipa de produção.

Além do conceito inovador de distribuição – o Netflix disponibilizou todos os episódios de cada uma das duas épocas já apresentadas sempre de umas vez só, cabendo aos canais mais “convencionais” um modelo de apresentação mais “clássico” ao ritmo de um episódio semanal –, House of Cards nasceu com um conceito criativo aberto à presença de um conjunto de vários realizadores. Na primeira época, a David Fincher, que assinou os dois primeiros episódios, juntaram-se James Foley (autor de Glengarry Glen Ross), Joel Schumacher (que assinou alguns filmes Batman nos anos 90), Charles McDougall (com experiência em The Office), Carl Franklin (que realizou episódios de Roma ou The Pacific) e Allen Coulter (que trabalhou em Os Sopranos). A segunda época a estes acrescentaria ainda Jodie Foster (atriz também com experiência na realização), John Coles (que trabalhou em Os Homens do Presidente), Robin Wright (a atriz que veste a pele da mulher de Frank Underwood, na sua estreia na realização), com Fincher desta vez apenas envolvido na produção.

(continua)