segunda-feira, junho 30, 2014

Para (re)descobrir François Dupeyron

O francês François Dupeyron (n. 1950) continua a ser um cineasta mal conhecido entre nós. A estreia de Minha Alma por Ti Liberta aí está para nos ajudar a (re)descobrir a beleza interior do seu cinema — este texto foi publicado no Diário de Notícias (28 Junho), com o título 'A doença dos sentimentos'.

François Dupeyron escapa a todas as grelhas de classificação. Por um lado, o seu trabalho desafia os géneros correntes, mesmo se aceita tomá-los como ponto de partida: Drôle d’Endroit pour une Rencontre (1988), a sua estreia na longa-metragem, utilizava um par emblemático do cinema francês — Catherine Deneuve/Gérard Depardieu — para construir uma fascinante desmontagem das ilusões românticas [trailer]. Por outro lado, na sua tocante humanidade, as suas histórias são também viagens às fronteiras da identidade humana: Perigo Alucinante (1994), de novo com Depardieu, surgia como uma parábola sobre os pesadelos da tecnologia.


Não admira que, face a um filme tão belo como Minha Alma por Ti Liberta, hesitemos em convocar qualquer referência ou inspiração. A história de Frédi (espantoso Grégory Gadebois) que herdou, ou julga ter herdado, os dons curativos da sua mãe, tem tanto de crónica social sobre uma certa marginalidade, como de observação da possibilidade de haver alguma troca, genuína e consistente, entre as sensibilidades humanas.
Pressente-se, aqui, uma doença dos sentimentos que não encontra alternativa no cinismo que assombra as relações sociais. Aliás, vale a pena referir que a tradução exacta do título original (Mon Âme par Toi Guérie) seria “Minha Alma por Ti Curada”. É, de facto, uma forma de cura que Frédi vislumbra no amor de Nina (composta pela brilhantíssima Céline Sallette), mesmo se nada disso nos abre as paisagens redentoras de qualquer romantismo clássico [cena do filme].


Dir-se-ia que Dupeyron é um romântico consciente do anacronismo do seu olhar face ao materialismo do mundo contemporâneo. A actualidade de Minha Alma por Ti Liberta começa nessa obstinada procura de uma outra imaginação, e um outro imaginário, para as convulsões do amor — não há nada mais político.