sexta-feira, junho 20, 2014

Herberto Helder, Godard e o resto

De que falamos quando falamos de poesia? E que imagens mostramos para definirmos aquilo a que damos o nome de real? Vale a pena relançar tais questões, lendo o novo livro de Herberto Helder e passando por Godard — este texto foi publicado no Diário de Notícias (18 Junho), com o título 'A bilha de gás de Herberto Helder'.

No derradeiro poema do seu novo livro, A Morte sem Mestre (Porto Editora), Herberto Helder tece algumas considerações sobre um objecto banal, afinal carregado de energia vital (ou mortal, o que vem a dar no mesmo). Escreve ele a abrir esse poema: “a última bilha de gás durou dois meses e três dias / com o gás dos últimos dias podia ter-me suicidado / mas eis que se foram os três dias e estou aqui”.
De tão inesperado e desconcertante, o efeito de nomeação da bilha de gás pode motivar uma pergunta que, para usarmos uma terminologia típica dos nossos dias de globalização, decorre de uma certa transversalidade. Ou seja: porque é que a bilha de gás de Herberto Helder não suscita nos meios de comunicação social — a começar pelas televisões — alguma abordagem através de imagens?
Não é um delírio abstracto, entenda-se. É mesmo uma pergunta que questiona o cerne do nosso mundo figurativo, em particular, insisto, nas suas variantes televisivas. Podemos formulá-la de forma bastante mais concisa: porque é que, nas últimas semanas, a pretexto de uma lesão de um jogador de futebol, vimos e revimos nos ecrãs de televisão imagens médicas de joelhos, rótulas e tendões? Porque é que, do ponto de vista da cultura audiovisual dominante, o joelho de Cristiano Ronaldo é mais importante do que a bilha de gás de Herberto Helder?
Os mais exaltados lembrarão que tudo isso se justifica porque Cristiano Ronaldo é um dos nomes maiores da história do futebol português. Poderíamos referir, sem qualquer acinte, que Herberto Helder é um dos nomes maiores da história da literatura portuguesa... Mas colocar a questão desse modo seria passarmos para o espaço do lugar-comum (televisivo, hélas!) em que tudo se enuncia de forma conflituosa, ou no sentido de potenciar algum conflito mais ou menos ruidoso e inconsequente.
O que está em jogo decorre, como seria inevitável, de antagónicas atitudes filosóficas. Dito de outro modo: na vida corrente de muitas formas do audiovisual contemporâneo, a imagem existe como “gadget” meramente instrumental, não tem relação com nenhum universo consistente de conhecimento, muito menos com a literatura. Para mais, sendo Herberto Helder, há muitos anos, avesso a aparecer em imagens, isso empresta-lhe uma dimensão selvagem de que a ideologia televisiva só pode suspeitar. Como ele escreve, num contundente poema de duas linhas: “e eu sensível apenas ao papel e à esferográfica: / à mão que me administra a alma”.
Habitamos um mundo que deixou de cultivar o gosto pelo carácter irredutível das imagens. O cão de Jean-Luc Godard, por exemplo, personagem nuclear do seu filme mais recente, Adieu au Langage (estreado em Cannes), existe na mesma cândida objectividade que distingue a bilha de gás de Herberto Helder. Mas o joelho de Cristiano Ronaldo é tratado como metáfora compulsiva dos sentimentos de todo um país.