terça-feira, junho 03, 2014

Assim nasceu o rock em Portugal (parte 2)

Este texto é a primeira parte de um artigo originalmente publicado na edição de 24 de maio do suplemento Q. do DN com o título 'Enquanto a rapaziada tocava guitarra não tinha tempo para a política'. 

Analisando, ordenando e catalogando o ié-ié made in Portugal (e afinal é isso que o livro nos oferece), Luís Pinheiro de Almeida identifica duas fases completamente distintas: antes e depois dos Beatles. Antes, “os reis eram os Shadows e até houve um concurso no antigo cinema Roma em Lisboa, em 1963, precisamente chamado ‘do Tipo Shadows’. A onda chamava-se ‘ritmos modernos’. Eram praticamente só conjuntos instrumentais, mas como os Shadows também tinham vozes, lá aparecia também uma ou outra voz de vez em quando. Foi assim que ganhou o Conjunto Mistério (instrumental) com a voz emprestada de Fernando Gaspar, dos Conchas”.

Os “conjuntos”, como então se lhes chamava, “nasciam sobretudo nos liceus (e há muitos exemplos disso, como os Fanatic’s) ou vizinhos de bairro (como os Sheiks), mas sempre no seio da classe remediada ou alta, com capacidade financeira para a aquisição do equipamento oneroso”. A grande “montra” dos conjuntos “eram as festas escolares, como os bailes de finalistas, as queimas das fitas, as festas populares, os carnavais, digressões ao então Ultramar, festas de Verão, nas boîtes, como o Caruncho, no Algarve”… E como a maior parte “dos membros dos grupos eram estudantes, os conjuntos, normalmente, chamavam-se ‘conjunto universitário’ (como os Hi-Fi) e/ou ‘conjunto académico’ (como os Espaciais)”.

Apesar da quantidade impressionante de grupos que surgiam (e muitos deles gravaram discos, sobretudo no formato de EP), este era um espaço de nicho no panorama discográfico de então. “A força dominante no meio musical era o chamado nacional-cançonetismo, com Simone de Oliveira, Madalena Iglésias, António Calvário, Artur Garcia, o fado também”, explica Luís, que acrescenta que era “extremamente difícil ao ié-ié furar o sistema”. Havia contudo “programas como Enquanto For Bom Dia, Página Um e 23ª Hora, na Rádio Renascença, que passavam e até encorajavam o movimento”. Luís Pinheiro de Almeida lembra que “nem todo o movimento ié-ié era uniforme: havia conjuntos que tinham passagem garantida como os Sheiks, Conjunto Académico João Paulo, Quinteto Académico, Rock’s e outros que raramente chegavam ao éter como os Blusões Negros, os Galãs, os Demónios Negros ou os Vodkas”. Na televisão, e na altura só havia a RTP, “ainda mais difícil era”. Havia “um ou outro programa, como os Reis do Ritmo ou alguns especiais que lá davam atenção, de quando em quando, a um ié-ie”. Mas “a partir de determinada altura, o próprio Festival RTP da Canção começou também a ser veículo de divulgação com o Quarteto 1111, Carlos Mendes ou Eduardo Nascimento (que se revela como vocalista nos Rock’s)”. O Verão (1968) e O Vento Mudou (1967) destes dois últimos chegaram mesmo a ter passaporte para o Festival da Eurovisão, naqueles que foram dois raros episódios de visibilidade internacional do ié-ié nacional.

Apesar da expressão discreta de muitos destes nomes, alguns conjuntos chegaram a gerar fenómenos de vendas de discos. “Os Sheiks vendiam… a editora gostava deles, o Conjunto João Paulo vendia, a editora mimava-o, os Conchas vendiam, a editora adorava-os”, recorda o autor. Pelo contrário, “o Folk 2 não vendia, a editora não lhes ligava, os Tubarões não vendiam, a editora esquecia-se deles, os Vodkas não vendiam, a editora não lhes passava cartão”. Nota então que “o revés”, em termos de colecionismo, ganha expressão no presente: “há por aí muitos discos dos Sheiks, do Conjunto João Paulo, dos Conchas, logo o seu valor é baixo. Raros, raros, são os do Folk 2, Tubarões, Vodkas, Jets, Diamantes Negros, etc.” Luís diz que ainda hoje se “arrepia” com o comportamento das editoras discográficas: “por exemplo, é quase impossível fazer uma antologia dos Ekos ou do Conjunto Mistério, duas das melhores bandas que alguma vez este país conheceu.” Ou até mesmo “uma colectânea significativa”.

(continua)