Um filme indiano muito particular e também exemplarmente universal: eis uma raridade no mercado português que, naturalmente, se saúda — este texto foi publicado no Diário de Notícias (3 Maio), com o título 'Cinema indiano redescobre as virtudes do melodrama'.
Nos últimos anos, mesmo as típicas comédias musicais do cinema da Índia — isto é, da gigantesca máquina de produção conhecida como “Bollywood” — foram desaparecendo das salas portuguesas. Daí que o lançamento de um filme como A Lancheira constitua um acontecimento cujo carácter excepcional importa sublinhar — estamos, de facto, perante um singular universo melodramático, muito atento às convulsões familiares e sociais do quotidiano, no qual podemos reconhecer a herança de um mestre indiano como Satyajit Ray (1921-1992), lendário autor de clássicos como O Mundo de Apu (1959) ou Charulata (1964).
Trata-se da estreia na longa-metragem de Ritesh Batra (nascido em Mumbai, em 1979), aliás assumindo também a autoria do delicado argumento de A Lancheira. Tudo se desenvolve a partir de um insólito equívoco, pleno de consequências afectivas e simbólicas. Isto porque uma mulher, de nome Ila (Nimrat Kaur), descobre que o almoço que envia diariamente para o marido, no seu local de trabalho, não lhe é entregue... Devido a um erro do célebre sistema de distribuição que existe em Mumbai, a lancheira de Ila vai parar a outro escritório, sendo recebida por um homem cujo apelido, curiosamente, reflecte alguma ascendência lusitana: Saajan Fernandes (Irrfan Khan). O certo é que ambos mantêm a situação, começando a corresponder-se por bilhetinhos inseridos na própria lancheira.
A breve sinopse poderá levar-nos a pensar que se trata de uma típica narrativa de adultério, centrada num mais ou menos previsível triângulo amoroso. E se é verdade que o ponto de partida pode sugerir tal enquadramento, não é menos verdade que o desenvolvimento de A Lancheira introduz nuances dramáticas e melodramáticas que afastam o filme de qualquer efeito convencional (inclusive no próprio desfecho). Desde logo porque a atitude de Ila envolve um inesperado desafio ao seu estatuto de esposa, aliás subtilmente sancionado pela divertida (e sempre invisível) personagem da tia que vive no andar de cima. Depois porque, no limite, a crise do casamento de Ila e a viuvez de Saajan vão gerando um espaço de pudica cumplicidade, por assim dizer unificado pelo sentimento de uma existência vivida em metódica solidão.
Embora enraizado num universo familiar e social obviamente distante de usos e costumes ocidentais, há em A Lancheira um realismo dos estados de alma que acaba por gerar um forte apelo universal — afinal, Ila e Saajan são duas personagens à procura do lugar a que pertencem, ou melhor, das razões para pertencer a um determinado lugar.
Com uma presença importante em vários festivais internacionais, incluindo Cannes (Semana Internacional da Crítica), Dubai e Toronto, A Lancheira acabou por se transformar num dos mais significativos fenómenos internacionais da mais recente produção da Índia. E também um sintoma da diversificação dos respectivos mecanismos de produção, já que o seu financiamento, além de várias empresas indianas, envolveu também entidades da Alemanha, França e EUA.