segunda-feira, maio 19, 2014

A catástrofe de Godzilla

Entre as referências emblemáticas do cinema popular, aí está de novo Godzilla: tenta ser um filme-catástrofe, mas não passa de uma catástrofe de filme — este texto foi publicado no Diário de Notícias (15 Maio), com o título 'À procura do espaço e do tempo'.

Pelo novo Godzilla passa uma galeria de actores tão talentosos como Aaron Taylor-Johnson, Ken Watanabe, Elizabeth Olsen, Juliette Binoche, Sally Hawkins, David Strathairn e Bryan Cranston... Que impressão nos deixam? Coisas soltas, quase nada. Por exemplo, Binoche, nome grande do cinema europeu, foi castigada com uma “não-personagem”, excluída do filme ao fim de breves minutos, enquanto Hawkins é tratada com tal indiferença que quase nos custa reconhecer a actriz que vimos brilhar sob a direcção de Mike Leigh (Um Dia de Cada Vez, 2008) ou Woody Allen (Blue Jasmine, 2013).
Há uma outra maneira de dizer isto: Godzilla ilustra a crescente degradação da dimensão humana de um cinema que, nos EUA ou na Europa, confunde a arte narrativa com a ostentação dos meios técnicos. O actor é mesmo entendido como uma peça banalmente instrumental, já não havendo corpos vivos, apenas figurinhas amorfas fingindo que algo de relevante está a acontecer.
Não se pense que tal questão se coloca por causa de o protagonista ser, para todos os efeitos, a figura imensa de Godzilla. Acontece que o impacto dos monstros cinematográficos (cuja tradição é vasta e nobre) depende pouco dos respectivos efeitos especiais e mais, muito mais, do envolvimento dramático e humano em que os descobrimos — para nos ficarmos por um exemplo esclarecedor, lembremos esse filme admirável que é The Thing/Veio do Outro Mundo (1982), de John Carpenter.
O caso de Godzilla é ainda mais patético porque já nem se sabe valorizar uma das suas componentes tradicionais, isto é, a grandeza física: o monstro pode partir um arranha-céus em dois segundos, mas nada disso envolve qualquer sentido dramático do espaço ou vibração emocional do tempo. E como fazer cinema sem ter algum respeito pelo espaço/tempo?