Que está a acontecer para que, em televisão, o 25 de Abril seja (re)contado como uma espécie de história da carochinha dos amanhãs que cantam?... Aparentemente, já quase ninguém se lembra dos Beatles — este texto foi publicado no Diário de Notícias (6 Maio).
Comemoram-se este ano os 50 anos do primeiro filme dos Beatles — foi em 1964 que Richard Lester dirigiu os quatro de Liverpool em A Hard Day’s Night, entre nós lançado com o título surreal de Os Quatro Cabeleiras do Após-Calipso (Calipso: a ninfa da mitologia ou o género musical, nunca saberemos...).
Face à avalanche televisiva em torno dos 40 anos do 25 de Abril, não pude deixar de me lembrar dessa memória, apenas uma entre os triliões que podemos evocar para dizer aquilo que eu julgava ser uma evidência para, pelo menos, a minha geração. A saber: a maior parte de nós viveu a ditadura do Estado Novo, não exactamente a distribuir panfletos clandestinos com foices e martelos ou a organizar a fuga de “camaradas” para a selva inabitável de Paris, mas cá dentro, numa ignorância feliz povoada de actividades “lamentáveis” como ler romances de Fernando Namora, acompanhar religiosamente a série Missão Impossível na RTP ou entrar em discussões monumentais sobre a condição inexorável de lixo ou o puro génio do álbum Ummagumma (1969) dos Pink Floyd...
Mas não. Quase todos os elementos da minha geração — acolitados por muitos jovens incautos que, microfone em punho, falam para uma câmara como se a história fosse uma colagem de grosseiros maniqueísmos — parecem empenhados, não apenas em reduzir a história do salazarismo à estupidez ideológica de um filme de Chuck Norris, mas sobretudo em legar aos mais novos uma medíocre herança simbólica que sugere que, em particular na década de 60, nunca ouvimos música, não lemos, não pensámos, nunca soubemos o que é a perturbação de um qualquer desejo... E não havia mini-saias, santo Deus, nem nunca ouvimos o Je T’Aime Moi Non Plus!
Na prática, esta agonia televisiva (de que a efeméride do 25 de Abril emergiu apenas como um desenlace de muitos anos de acumulado simplismo “jornalístico”) está a conseguir transformar qualquer forma de pertença — social ou afectiva — numa histeria mais ou menos gritada no interior da qual não há vida possível.
Aliás, no plano das narrativas televisivas, sentiu-se uma sinistra continuidade figurativa e conceptual entre as manifestações do 25 de Abril/1º de Maio e o ruído em torno do apuramento do Benfica para a final da Liga Europa. E não tenhamos dúvidas: tudo isso se vai agudizar com a abordagem da presença da selecção portuguesa no Mundial de Futebol que, a avaliar pelo que já está a acontecer, será encenada, repisada e infinitamente repetida nas “notícias” como mais uma pueril saga colectiva de descabelado patriotismo.
Não tem, por isso, nada de acidental que os 40 anos do 25 de Abril tenham omitido qualquer hipótese, mesmo discreta, de reflexão sobre o lugar social do próprio dispositivo televisivo em quatro décadas de democracia. Que, totalmente a despropósito, eu me atreva a considerar que o Ummagumma é mesmo genial, eis a minha incurável fraqueza...