sábado, abril 05, 2014

Os sons que nascem do silêncio,
segundo Eleni Karaindrou (2)

Continuamos a apresentação de uma entrevista com a compositora grega Eleni Karaindrou, originalmente publicada no suplemento Q. do DN com o título “Liberdade e silêncio, na música de Eleni Karaindrou”.

Vivendo e trabalhando em Paris, ao estudar etnomusicologia encontrou novos pontos de vista sobre a música grega. E dessas novas abordagens à distância nasce o que admite ser um “sentido de nostalgia”. Encontrou “tesouros”, descobriu “a música não escrita, a de tradição oral”, que representa “perto de 80 por cento da música global”. Preparou mesmo um doutoramento que, todavia, nunca terminou, mas desse tempo colheu “muitos motivos” para a sua própria composição. Por essa altura uma professora ouviu algumas das suas composições e incentivou-a seguir esse caminho. Tanto que, quando “a ditadura caiu na Grécia”, Eleni deixou “cair” o seu doutoramento e regressou ao país com o seu primeiro disco para a cantora Maria Farandouri, uma amiga dos dias de infância.

Recebeu por esses dias as primeiras propostas para trabalhar no teatro e no cinema. Estávamos em 1975. E aí começou o que descreve como uma “fantástica aventura” que desses espaços essencialmente feitos de imagens, palavras e experiências dramáticas fez emergir uma voz autoral. “Desde então não compus muitas canções, talvez apenas umas 20, mas para teatro ou cinema”, conta a compositora, acrescentando que não quis fazer uma carreira na canção porque esse não era o caminho que lhe “interessava”. Preferia expressar-se “pelos sons da orquestra”. Eleni Karaindrou faz contudo questão de deixar claro que não tem quaisquer problemas no relacionamento com as palavras e, em particular, a poesia: “Adoro poesia, é um amor na minha vida”, confessa, lembrando que escreveu poemas enquanto jovem e que ainda hoje gosta de ler “poesia grega e de todo o mundo”... Tem “a sua música, tem uma beleza como a das pequenas joias”, descreve. Na juventude, explica, leu os grandes romances, mas a poesia ainda hoje é para si um meio para se “inspirar”. Profissionalmente trabalhou já “a grande poesia grega”. Em concreto com Eurípedes em As Troianas e Medeia. Mas no fundo o que a encanta aqui enquanto compositora é mais o sentido dramático que as palavras veiculam.




Há encontros que mudam uma vida. E se depois do vento na floresta, os cantos de trabalho e da música na igreja o piano na escola e o cinema ao ar livre do outro lado da rua foram presenças marcantes na etapa de formação, o encontro com o cineasta Theo Angelopoulos representou um episódio maior na construção do seu rumo enquanto compositora. “É muito importante ter encontros na vida e esse foi um grande encontro”, admite. De resto, “quando se trabalha 27 ou 28 anos com alguém e se faz tantos filmes em conjunto encontra-se algo mais profundo nas pessoas”. Esse encontro, diz Eleni Karaindrou, ajudou-a a encontrar-se, deu-lhe “respostas a questões profundas” que colocava a si mesma, e sobre a sua existência.

A relação entre ambos remonta a inícios dos anos 80. O realizador grego era então presidente do júri no festival de Tessalónica onde a compositora se apresentou “com o filme poético Roza, sobre Rosa Luxemburgo”. A banda sonora era sinfónica. “O Theo gostou e deu-me o prémio da música no festival. Ele conhecia então o meu estilo e eu, pelo meu lado, adorava o seu, os seus filmes, a sua maneira de organizar os planos, a sua poesia”, recorda deixando evidente uma admiração mútua que desde logo floresceu. E quando propôs um trabalho conjunto, Eleni diz que Angelopoulos “sabia instintivamente o que procurava” em si.

Em 1983, quando começaram a trabalhar em Taxidi sta Kythira, o primeiro filme que fizeram juntos o realizador contou-lhe a história que queria filmar: “Ele tinha uma voz de contador de histórias e um modo de narrar que nos fazia pensar em imagens maravilhosas”, lembra. Ela regressou a casa e, no dia seguinte, às oito da manhã, sentou-se ao piano e compôs os temas do filme. “E a rodagem nem sequer tinha ainda começado!”, sublinha. Levou-lhe depois uma cassete e explicou que se tinha inspirado no que lhe tinha contado: “Ele pegou na cassete e, no dia seguinte, disse-me que era o que queria.” E para cada filme “daí em diante foi assim que se passou”. Ela “encontrava o tema de antemão, compunha, fazia as orquestrações e muitas vezes ele tinha a música completa antes de filmar”. Muitas vezes, acrescenta, Angelopoulos “fazia a coreografia com a música”. Noutras pedia uma canção ou pedia uma dança. Mas de um modo geral “os temas principais, a alma dos filmes estava quase sempre encontrada antes da rodagem”. Eleni confessa que desenvolveu com o realizador “uma relação magnífica” porque tinham “uma direção estética semelhante”.

Ele, pelo seu lado, também estava feliz com a colaboração. E a dada altura chegou mesmo a admitir à compositora que não imaginava um filme seu sem a sua música: “Era uma relação profunda e com admiração da minha parte e com estima e respeito pelas composições da parte dele”. Juntos trabalharam numa série de filmes, entre os quais O Passo Suspenso da Cegonha (1991), O Olhar de Ulisses (1995), A Eternidade e um Dia (1998) ou A Poeira do Tempo (2008).

(continua)