terça-feira, abril 22, 2014
No outro extremo do palco
Há um problema tremendo na forma de lidar com alguns documentários criados para o cinema que se coloca quando o tema é tão interessante e inédito que, mesmo perante uma ideia cinematograficamente pobre acabamos eventualmente saciados e satisfeitos. É certo que nem todos os temas podem ter um tratamento invulgarmente imaginativo, desafiante e arrebatador como o fez John Greyson ao documentar a história de figuras que vivem com o vírus VIH na forma de uma ópera em Fig Trees ou, e sem fugir desse mesmo assunto, o fez Joaquim Pinto no espantoso E Agora?... Lembra-me, filme que no ano passado vimos no Queer Lisboa e DocLisboa e que aguarda ainda uma muito justificada estreia em sala entre nós. Outro exemplo de grande ideia ao serviço de um documentário? A forma como Gonçalo Tocha mergulhou no dia-a-dia da Ilha do Corvo para nos dar a ver É Na Terra Não É Na Lua. Ou o retrato de vida e morte num mercado de Macau que João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata apresentaram em Alvorada Vermelha... O desfile podia avançar sem ter de visitar momentos célebres por Alain Reansis, Agnés Varda ou Chris Marker para dar exemplos de como o cinema documental pode ser uma experiência maior e capaz de expressar a personalidade de quem a assina... O grande problema de A Dois Passos do Estrelato é precisamente a falta de um ponto de vista que faça do filme uma experiência pessoal que depois possamos todos partilhar e não apenas uma peça jornalística cuidada, séria e oportuna de alto orçamento e longa duração.
Convenhamos que o assunto é mesmo muito interessante. Quantas vezes vimos atuações e escutámos gravações reparando que, ao lado dos protagonistas, normalmente uns metros mais atrás na geografia dos palcos, há outras vozes que ora sublinham, ora respondem, ora acrescentam algo ao canto que conduz a canção. Dar protagonismo a coristas foi pois a ideia de Morgan Neville, que foca atenções entre os universos pop/rock e do rhythm’n’blues e figuras com carreiras essencialmente lançadas entre os sessentas e oitentas, para em conjunto revelar peças determinantes nas histórias de tantas canções mas que ficaram lá por trás, entre o cenário, muitas vezes sem o nome devidamente reconhecido.
Darlene Love e a sua história de feitos nos sessentas, de vida sob o comando de Phil Spector e de um desvio de linha que a levou a dada altura a trabalhar em limpezas domésticas, é a “voz” principal num desfile de histórias e canções de figuras que cantaram ao lado de nomes como os Rolling Stones, Joe Cocker ou Sting. Vemos Luther Vandross, um dos poucos que vingou em nome próprio depois de por muitos descoberto nos coros de Young Americans de Bowie. Escutamos Mick Jagger ou Stevie Wonder. E Sting deixa claro que o fator sorte, aqui, por vezes, é determinante.
É verdade que A Dois Passos do Estrelato conta uma história poucas vezes contada, pelo que o filme tem esse mérito, encontrando histórias e vozes interessantes que, em conjunto, nos proporcionam um panorama claro deste universo. Olha por isso para a música colocando a atenção para onde raramente a lançamos. Mas a dinâmica de construção narrativa do filme é cansativamente televisiva. E, no modelo que nos propõe, um “especial” de 60 minutos dava conta do recado. No final, não entendi como – e talvez por ser relato de “coisa” esquecida da cultura americana se explique – um filme como este “rouba” o Óscar de Melhor Documentário ao decididamente mais marcante O Ato de Matar, esse sim, um daqueles a ficar na história do cinema (e nem é preciso acrescentar a palavra documental).