Como recordar a carnificina que assolou a Indonésia, em 1965-66, precedendo a chegada ao poder do Presidente Suharto? O cineasta Joshua Oppenheimer estabeleceu um diálogo com os próprios assassinos, convidando-os a encenar os seus crimes. Resultado: um documentário que desafia as fronteiras do próprio género documental — este texto foi publicado no Diário de Notícias (17 Abril), com o título 'O que é uma visão do mundo?'
É muito difícil falar/escrever sobre um filme como O Acto de Matar, de Joshua Oppenheimer. Desde logo, pela violência intrínseca das suas memórias: as atrocidades evocadas — ocorridas durante a purga anti-comunista de 1965-66, na Indonésia — perturbam qualquer sensibilidade humanista. Ao mesmo tempo, à medida que avançamos nesta saga dos assassinos que encenam a sua própria história, deparamos com a pergunta mais primitiva do género documental. A saber: que contrato existe entre quem filma e a realidade que é filmada?
Contrato, entenda-se, não significa aqui um obrigatório documento formal definindo as formas de relação entre cineasta e personagens. A relação contratual que está em jogo é de outra natureza: trata-se de saber que discurso o cineasta elabora a partir das “fatias” de realidade que procura ou lhe são proporcionadas. De uma maneira ou de outra, Oppenheimer toca, assim, numa questão nuclear da actual conjuntura documental: como ser fiel à complexidade de uma tão perturbante realidade sem ceder aos códigos correntes do naturalismo televisivo e à sua crescente colagem às imposturas estéticas e filosóficas da “reality TV”?
São dúvidas que se justificam tanto mais quanto O Acto de Matar não renega uma componente de psicodrama que, por vezes, parece aceitar o sensacionalismo dos “apanhados” televisivos. Mais do que isso: são dúvidas que não excluem o reconhecimento paradoxal de que Oppenheimer pressente que é a densidade do seu tema que, no limite, questiona o próprio labor cinematográfico. Não creio que ele tenha uma resposta sólida para tais problemas, mas importa reconhecer que não é todos os dias que um filme documental expõe de modo tão radical a própria dificuldade de olhar e construir uma visão do mundo.