Um belíssimo filme capaz de "actualizar" a herança de Henry James: O Que a Maisie Sabe é, para já, uma das grandes estreias de 2014 — este texto foi publicado no Diário de Notícias (20 Abril), com o título 'Sob o signo de Henry James'.
No meio das promoções de “blockbusters” e afins, será que o mercado cinematográfico ainda tem capacidade para sustentar a subtileza formal e a simples sensibilidade humana de filmes tão preciosos como O Que a Maisie Sabe? Receio bem que não, de tal modo anos e anos de um marketing formatado e redutor (comercialmente redutor, entenda-se) foram secundarizando quase tudo o que não corresponda a uma noção frívola, historicamente vazia, de “espectáculo” e “efeitos especiais”.
Assim vai o mundo: O Que a Maisie Sabe, de Scott McGehee e David Siegel, aborda o mais universal dos temas — as vivências de uma criança perdida no turbilhão do divórcio dos pais —, mas surge nas salas escuras como se fosse um ovni difícil de enfrentar. E repare-se: não se trata de considerar que tal marginalização resulta de qualquer “incompetência” do mercado português. Nada disso. O problema é muito mais universal e, em boa verdade, começa no interior da gigantesca máquina do cinema made in USA: a produção americana já não sabe como defender, isto é, promover os seus produtos mais sofisticados, sobretudo aqueles que mantêm uma relação rica, complexa e fascinante com as mais nobres tradições da cultura dos EUA.
HENRY JAMES — pintura de John Singer Sargent, 1913 |
Cultura literária, desde logo: O Que a Maisie Sabe consegue a proeza de “transferir” para o nosso presente a acção do romance de Henry James, What Maisie Knew (publicado em 1897), superando todas as diferenças de contexto e, sobretudo, conservando a sua fundamental interrogação dramática: como é que uma criança, perdida nos ziguezagues dos adultos, constrói a sua própria visão do mundo?
McGehee e Siegel são cineastas dos olhares. Em sentido muito literal: cada cena de O Que a Maisie Sabe é elaborada, não a partir de uma perspectiva banalmente descritiva, antes como uma teia de olhares cujas diferenças ou cumplicidades constituem, afinal, o assunto nuclear do drama. Não admira, por isso, que este seja um cinema de militante paixão pelas singularidades dos actores: Julianne Moore e Steve Coogan (interpretando o casal em processo de separação), ou ainda Alexander Skarsgard e Joanna Vanderham, são todos eles modelares nessa caracterização de personagens que envolve os códigos do seu estatuto social, tanto quanto as convulsões da psicologia individual. Em todo o caso, importa destacar a brilhante Onata Aprile, compondo uma Maisie que se diferencia, ponto por ponto, de qualquer caracterização maniqueísta ou moralista da infância.
Talvez que, em última análise, seja essa a força de um objecto como O Que a Maisie Sabe: vivendo nós num mundo em que as linguagens mais poderosas — desde a telenovela à publicidade — tendem a reduzir o espaço familiar a uma paisagem formatada e moralista, eis um filme que celebra a mais básica vontade de não encerrar a experiência humana em meros clichés para consumo mediático. O cinema é isso, não é?