sábado, abril 19, 2014

Há vikings em Londres! (parte 3)


Continuamos a publicação de um texto sobre a exposição ‘Vikings: Life and Legend’, patente no British Museum, que foi originalmente publicado no suplemento Q. do DN de 12 de abril com o título ‘Para acabar com a visão romântica dos vikings’.

Os achados mais recentes, que dão conta da vasta dispersão do mapa de contactos e de influências da idade viking permitem criar uma nova perspetiva global da sua época. O conhecimento que hoje temos dos vikings é baseado numa série de evidências “que diferem em qualidade e quantidade por razões ligadas a tradições culturais e estados de preservação”. As poucas inscrições rúnicas (3) que chegaram aos nossos dias (muitas delas encontradas em pedaços de madeira, representando ora o equivalente a cartas ora a anotações) permitem mesmo assim abrir algumas frestas sobre uma série de assuntos, como por exemplo o relato de viagens. Estas inscrições não servem contudo nunca, explica Gareth Williams, para a narração de uma história da idade viking de um ponto de vista escandinavo. O completar da informação provém assim das sagas (muitas delas redigidas em norueguês antigo e reunidas na Islândia), assim como de relatos em latim. Estes registos datam contudo dos séculos XII e posteriores. Ou seja, são posteriores à chamada idade viking. Anacronismos e a “inserção de elementos fantásticos no seio de outros acontecimentos aparentemente históricos, assim como o desejo dos autores de contar uma grande história, refletindo ainda agendas políticas ou culturais, em muitos casos introduzindo mesmo padrões e motivos estabelecidos” não ajudam a uma definição mais clara das verdades que a história naturalmente procura, explica Williams em Vikings Life and Legend. O autor reconhece que é difícil definir até que ponto os acontecimentos são distorcidos entre a data em que ocorreram e aquela em que foram descritos em sagas redigidas algumas gerações depois, pelo que defende que não devem ser tomadas como fontes credíveis para a construção de uma narrativa histórica sobre a idade dos vikings, ressalvando contudo que “não podem ser ignoradas”.

Muitas das evidências mais recentes provêm de sociedades com as quais os vikings contactaram, os dados colhidos pela arqueologia (e têm sido achadas povoações inteiras, fortes e quintas) e, com algum peso, o estudo das moedas aqui e ali encontradas, sendo fundamentais na construção do conhecimento que hoje temos sobre estes povos e este tempo. Gareth Williams aponta ainda algumas “fontes tangíveis” como a história da linguagem e até mesmo a toponímia como importantes elementos a ter em conta.

Apesar de serem sobretudo referidos os feitos navais (de comércio ou militares) dos vikings, o grosso da população escandinava do seu tempo vivia essencialmente da agricultura ou trabalhando como artífices. A sua expansão além do espaço escandinavo fez-se contudo pelo mar. E levou-os longe. A primeira sala da exposição revela-nos a imensidão do mapa de relacionamentos dos vikings. Naturalmente com o foco central na Escandinávia e Norte da Europa, mas com uma extensão de rotas que os levou tanto a terras canadianas como às fronteiras do antigo império romano, chegando mesmo a espaços na Ásia Central.

No capítulo Contacts & Exchange, Gareth Williams e Sunhild Kleingärtner descrevem as populações viking como cultural e etnicamente mais diversificadas que aquilo que muitas vezes se crê (sublinhando que “as terras escandinavas eram elas mesmas diversas geográfica, política, ecomómica e culturalmente”). Os contactos que estabeleceram com populações por vezes tão distantes não se limitavam ao plano económico das trocas comerciais ou das mais violentas incursões pela força. Houve trocas sociais, incluindo alianças, trocas de presentes, casamentos políticos.

Um dos principais motores para a expansão viking para lá da Escandinávia nasceu de uma vontade de gerar riqueza. Já havia contactos externos destes povos antes da “idade viking”, mas é no final do século VIII que as suas fronteiras se alargam a outras latitudes. Há, por exemplo, vestígios de um antigo interposto comercial em Statraya Ladoga, na Rússia, em meados do século VIII, tendo os achados arqueológicos sugerido que ali vivessem escandinavos, eslavos e gentes do báltico. Bem longe dali, o mundo árabe conheceu um contacto direto com os vikings em duas regiões distintas: na (atual) Espanha muçulmana e Marrocos – há, por exemplo, relatos de um raide viking no Sul da Península Ibérica em 844 naquele que é o mais antigo dos registos de incursões pelo Mediterrâneo – e, mais distante ainda, no Médio Oriente e Ásia Central.

A idade dos vikings é contemporânea de uma época de florescimento dos reinos escandinavos da Noruega, Dinamarca e Suécia. Anne Pedersen caracteriza, no capítulo Power & Aristocracy, como eram os centros de poder numa época em que nestes territórios “não havia capitais nem instituições centrais de governo e administração como hoje as conhecemos” e que os reis desse período viajavam entre as suas diversas residências, “reforçando a sua autoridade através dos monumentos” que iam erigindo. A rivalidade entre governantes e as grandes famílias poderosas de então motivaram alguns conflitos militares e têm hoje evidência material em objetos pessoais que definiam aparências e comportamentos. Os navios, as construções monumentais e o “uso deliberado da paisagem” eram elementos de uma “linguagem do poder” da realeza escandinava da época. A escala das construções que as escavações arqueológicas evidenciam, e o tipo de objetos que nos chegaram ao presente, todos eles expressões materiais dessas afirmações de poder, dão também conta do conhecimento técnico alcançado e de um patamar de controlo sobre recursos humanos e naturais que ali foi atingido. Fivelas, esporas e peças de joalharia provenientes de sítios arqueológicos na Alemanha, Dinamarca, Inglaterra, Dinamarca ou Rússia materializam nas vitrinas da exposição este saber de artífices, a prata, o cobre e o ouro ostentando evidentes sinais de riqueza e poder.

A estas peças as histórias do quotidiano viking que aqui presenciamos juntam objetos “estrangeiros” que, por razões essencialmente pragmáticas, eram usados (alguns depois de transformados) em algumas comunidades não necessariamente para o executar de tarefas do dia-a-dia mas, sobretudo, como outra forma de expor riqueza e estatuto. Sunhild Kleingartner assinala como exemplo algumas peças de joalharia feminina que não são mais senão reutilizações de elementos de cintos carolíngios, acrescentando mesmo que “a joalharia da idade viking incorporava objetos que tinham sido usados como forma de pagamento nas regiões de onde provinham”. A descoberta, por exemplo, de moedas de origem árabe em escavações em Scania, no Sul da Suécia, evidencia este modelo de relacionamento. O texto vinca que a utilização deste tipo de elementos em colares e pulseiras era também uma marca de afirmação ou reconhecimento de “alianças sociais”, o que “enfatizava o valor destes objetos e sublinhava a sua função como símbolos de status”.

A exposição (e o catálogo) assinalam também um relacionamento entre os vikings e as noções de crença e religião. Mas, como observa Neil Price no capítulo Belief & Ritual, estes povos “não tinham uma palavra para religião”, lembrando que “o mais próximo equivalente seria uma identificação com a mais lata terminologia dos ‘costumes’ no sentido de práticas tradicionais que se considerava apropriado seguir”. Gestos e hábitos que, assim, mostravam um relacionamento mais próximo com comportamentos sociais do que com os tipos de relacionamento do homem com o divino que caracterizam as fés do nosso tempo, como aqui se explica. A espiritualidade dos vikings estava, na verdade, mais ligada a interações com o mundo natural (mesmo quando nele se procuravam poderes maiores e, como diríamos hoje, sobrenaturais).

(3) Runas são letras dispostas em alfabetos usados entre alguns povos do Norte da Europa antes da adoção do latim.