sábado, abril 19, 2014

Durão Barroso não é estúpido

PAUL CÉZANNE
Natureza Morta com Caveira
1900
Ao aproximar-se o 40º aniversário do 25 de Abril, será que ainda há espaço televisivo para pensar para além dos clichés "revolucionários"? Provavelmente não — esta crónica de televisão foi publicada na revista "Notícias TV", do Diário de Notícias (18 Abril).

Um dos efeitos mais perversos — e, em boa verdade, mais quotidianos — da ideologia televisiva dominante é o de conseguir transformar qualquer afirmação pública num confronto maniqueísta. Viu-se (e ouviu-se), há dias, na sequência das afirmações de Durão Barroso na cerimónia de entrega do prémio europeu Carlos V à CAIS e à Escola Secundária de Camões [notícia no DN].
Que aconteceu, então? Barroso evocou o Estado Novo, considerando que no seu tempo existiu “ensino de excelência”. Não era uma frase panfletária. Teve o cuidado de dizer que se estava a referir ao “Portugal não democrático”, “pré-Comunidade Europeia” e “pré-União Europeia”. Lembrou que tal “excelência” existia “apesar do regime político em que se vivia”, alargando o âmbito do problema ao sublinhar que a falta de uma “cultura de excelência da escola” se sente, hoje em dia, em “muitas escolas portuguesas e europeias”.
Dito de outro modo: Barroso falou dos impasses (éticos, conceptuais, geracionais) da escola contemporânea que, salvo erro, constituem um incontornável tema social reconhecido, precisamente a nível europeu, por pensadores de todas as sensibilidades políticas. O certo é que nada disso impediu que, num ápice, as suas palavras circulassem pelo espaço televisivo como se fossem um apelo a um combate da mais pura estupidez argumentativa. Ansiando pela purificação forçosa e forçada deste mundo e do outro, a surdez televisiva foi impondo o seu mantra: “O Barroso anda a dizer que no tempo do Salazar é que estava tudo bem...”
Há uma moral terrível em episódios deste teor: passou a ser perigoso dizer publicamente qualquer coisa inteligente. Mas se alguém proclamar que até ao dia 24 de Abril de 1974 não aconteceu nada de vital neste país, então a sua dignidade televisiva está garantida... Depois de ser tratado como o único estudante “maoísta” que alguma vez existiu em Portugal, o presidente da Comissão Europeia corre o risco de ser rotulado de perigoso “salazarista” — eis uma triste proeza da nossa democracia televisiva.