O SÉTIMO SELO (Ingmar Bergman, 1957) |
Porque é que o trabalho de Ingmar Bergman sobre o indizível da morte ainda hoje nos toca, perturba e interroga? Porque resiste a todas as ilusões de naturalismo, transparência e moralismo edificante. Estamos num universo visceralmente cinematográfico, bem diferente da "espontaneidade" televisiva com que foi tratada a morte de Manuel Forjaz no programa "28 Minutos e 7 Segundos de Vida" (TVI). Mais do que nunca, importa discutir o modo como esse entendimento populista da televisão insiste em menorizar a complexidade do factor humano — este texto foi publicado no Diário de Notícias (15 Abril), com o título 'A morte que está na televisão'.
Leio nos jornais que, numa das suas derradeiras intervenções no Facebook, Manuel Forjaz escreveu estas palavras: “São bastante evidentes as semelhanças entre Victor Constâncio e uma ostra, sendo a mais importante o facto de serem os dois acéfalos.” Creio, por isso, que tem havido uma menorização humana do próprio Manuel Forjaz: afinal, ele deixou como legado uma visão política do mundo, mas a ideologia dominante instrumentalizou-o como símbolo da morte.
Tenho noção da delicadeza do assunto, quanto mais não seja porque corro o risco de confundir a discussão das práticas jornalísticas dominantes com o espaço intocável da privacidade. Nesse aspecto, aliás, não posso ocultar a perturbação que me invade quando vejo as imagens dos filhos de Manuel Forjaz a conversar sobre o seu falecido pai num programa da TVI, com José Alberto Carvalho. Não discuto a sua legitimidade, muito menos a sua sinceridade. Mas não posso deixar de perguntar: quatro décadas passadas sobre a herança humanista do 25 de Abril, que aconteceu para que, não apenas estes dois jovens, mas muitos cidadãos, assumam a sua vida privada como um facto necessariamente “social”? E em “rede”? Seja como for, no contexto breve destas linhas, o que tento focar é outra dimensão do problema. A saber: que aconteceu no jornalismo — sobretudo no jornalismo do espaço televisivo — para que até a própria morte seja invadida pela banalidade filosófica que, todos os dias, sustenta e promove o imaginário da imprensa “cor-de-rosa”?
Tento fixar-me naquilo com que, apesar de tudo, consigo lidar: as imagens e a nitidez da sua presença. Que faz com que haja jornalistas como José Alberto Carvalho a renegar todos os dias a necessidade de respeitar a complexidade do real? Que faz com que já quase não existam seres vivos na informação televisiva, mas apenas “símbolos” drasticamente redutores? No contexto da linguagem do pequeno ecrã, empurrar Manuel Forjaz para a condição de bandeira da “luta contra o cancro” é tão simplista como promover os concorrentes de A Casa dos Segredos a cruzados da “libertação sexual” — mas é isso que está a acontecer.
Há muitos anos, pouco depois do arranque das televisões privadas, participei num debate público com José Alberto Carvalho em que este modelo de jornalismo era já assunto de profundas discordâncias. Sugerindo que havia alguma má vontade face à “evolução” desse jornalismo, lembro-me do seu desabafo: “Mas porque é que é sempre a SIC que está em causa?...” De facto, ontem como hoje, não se trata de demonizar empresas. Não é, portanto, a TVI que está em causa. É, isso sim, a ideologia populista de um jornalismo que José Alberto Carvalho representa com evidente felicidade e pureza de espírito. O seu modo de estar e fazer televisão envolve, afinal, um imenso poder cultural — estas palavras são apenas para lembrar que ainda há minorias.