domingo, março 09, 2014

Os Oscars, Nikki Finke e Baudelaire

CHARLES BAUDELAIRE (1821-1867)
— foto de Étienne Carjat
Algumas utilizações "sociais" dos circuitos da Net reflectem uma patética miséria de pensamento. E os Oscars não escapam a tal efeito — esta crónica de televisão foi publicada no Diário de Notícias (7 Março), com o título '"Os Oscars em tom "social"'.

Sou dos que pensam que a utilização dos conteúdos das chamadas “redes sociais” como matéria (ou mesmo caução) de informação — televisiva ou não — reflecte um entendimento pueril do jornalismo. Os milhões que as utilizam geram, por certo, muitos conteúdos interessantes, estimulantes ou inovadores. Não é isso que está em causa. O que está em causa é o facto quotidiano de as ditas “redes” serem citadas como origem de algo a que, não poucas vezes, se atribui um valor automático e irrefutável. No limite, é possível que algum utilizador iluminado por uma redentora consciência “social” escreva algures qualquer coisa como “Oi, pessoal! O vosso programa é bué fixe...” e que isso mesmo, sem tirar nem por, ganhe direito de entrada em algum ecrã televisivo (desgraçadamente, não estou a exagerar).
Nikki Finke
Exemplo destes dias: algumas palavras da jornalista norte-americana Nikki Finke sobre a cerimónia dos Oscars. Ao que parece, o evento não a entusiasmou. Assim, na brevidade chique do Twitter, escreveu ela que queria a “devolução das três horas e meia de vida” que o espectáculo durou... Enfim, é um exercício de humor tão legítimo como qualquer outro: uns sentem-se tocados pela sua formulação, outros não e haverá mesmo quem fique completamente indiferente. O problema não está aí. O que importa discutir é a facilidade com que frases deste género encontram eco, não apenas no espaço “social” da Net, mas nas próprias notícias que se alimentam das suas matérias. Ninguém reflecte sobre a formulação, ninguém sublinha o relativismo — reproduz-se apenas porque é “giro”.
Conhecendo há muitas décadas a demagogia populista que confunde a crítica de cinema e televisão com um relatório da NASA, exigindo-lhe “objectividade” e “imparcialidade”, pasmo com a ligeireza com que os juízos de valor mais canhestros encontram, numa fracção de segundo, eco planetário. Consolo-me lembrando Baudelaire e a sua defesa da crítica como um exercício “parcial” e “apaixonado”. Mas reconheço a tragédia: que eu saiba, ele ainda não abriu uma conta no Facebook...