segunda-feira, março 24, 2014

França — a impotência à esquerda

* Não é um problema de saber ou não saber perder. Já basta a miséria do imaginário futebolístico. E não se trata de negar a inquietação que qualquer sensibilidade humanista não pode deixar de manifestar face ao avanço da Frente Nacional (FN), de extrema-direita, em sucessivos actos eleitorais em França. Muito menos de recusar reconhecer que o tecido social francês tem revelado sinais de um nacionalismo agressivo, tintado de diversas formas de perigosa xenofobia. A questão que aqui se refere é outra. A saber: a impotência que se instalou à esquerda.

* Impotência de quê? Pois bem, de compreender que "todo o mundo é composto de mudança", não da repetição de ideias ou ideais que teriam adquirido, ad aeternum, a vocação e o privilégio de nos indicar, sem nuances nem alteridade, o sentido da história.

* Assim, como é que o Libération resume, em título, o triunfo da FN nas municipais francesas? Denunciando o "medo" que se abate "sobre as cidades". A inspiração cinéfila não é famosa, nem mesmo como ironia de esquerda, remetendo para um policial medíocre, Peur Sur la Ville (1975), com Jean-Paul Belmondo dirigido pelo não muito brilhante Henri Verneuil — em todo o caso, a passagem para o plural (la ville / les villes) pode resumir o mais velho vício ideológico da esquerda: o de tentar resgatar-se do Mal, generalizando-o como um problema dos outros.

* Em defesa dos profissionais do Libération, há que dizer que o seu noticiário & análise das eleições é francamente menos simplista do que a sua manchete pode fazer supor. Em todo o caso, a escolha das grandes condensações simbólicas é sempre reveladora, neste caso de uma visão (jornalística) do mundo que prefere instalar-se no comodismo abstracto dos vectores "trágicos" em vez de lidar com o mais difícil de tudo — os factos, hélas!

* É bem certo que a problematização da vida política a partir da dicotomia direita/esquerda está há muito decrépita — a sua superação foi mesmo, entre nós, uma das hipóteses utópicas do 25 de Abril, embora não se ouça ninguém a falar disso... —, mas já que é dessa dicotomia que se trata, ao menos que se considerem as duas partes. É o que faz o jornal Le Monde, lembrando que o triunfo da FN não pode ser pensado sem referir o Partido Socialista como elemento "sancionado". Apesar de tudo, é francamente mais salutar do que tentar castigar com a fúria dos deuses (do medo) todos aqueles que não se reconhecem na razão universal com que a esquerda se apresenta e representa — e na sua auto-proclamada vocação redentora.