domingo, fevereiro 16, 2014

Viva o futebol assertivo!

JOÃO VIEIRA
Arte
2004
Decididamente, no futebol, não é muito importante que os comentários portugueses da televisão portuguesa sejam falados em língua portuguesa... Chegámos à fase da especialização anedótica. E não se vê/ouve ninguém a tentar contrariar o descalabro cultural — esta crónica foi publicada no Diário de Notícias (14 Fevereiro).

A violência a que muitos comentários das transmissões de jogos de futebol vão sujeitando a língua portuguesa é um daqueles escândalos culturais que, pelo que se vê (aliás, ouve), ninguém quer contrariar. Não falo dos naturais percalços resultantes de falar num contexto televisivo (os erros são frequentes e, mea culpa, serei o primeiro a reconhecer a sua incómoda existência). Falo, isso sim, do triunfo do dialecto “futebolês”.
Há tempos, por tudo e por nada, ouvia-se que uma equipa não dava “veleidades” a outra... Ter veleidades (no sentido de assumir a presunção de ser capaz de algo que está para além das suas capacidades) surgia com o “significado” de dominar um adversário.
Entretanto, os verbos no infinito vieram para ficar. Quando chega o intervalo de um jogo já não se diz: “Vamos para intervalo; veremos se a equipa da casa consegue manter a vantagem...” Há uma versão alternativa: “Vamos para intervalo. Dizer que a equipa da casa vai tentar manter a vantagem...”
Agora, a moda chama-se “assertividade”. De repente, uma equipa que domina outra passou a ser uma entidade “assertiva”. Compreende-se o razoável fundamento da descrição. Em todo o caso, uma vez mais, empobrece-se a complexidade da linguagem, já que o ser assertivo implica que alguém assuma a validade de uma afirmação, dispensando a sua demonstração num contexto em que, precisamente, se pode suscitar a necessidade de algum tipo de validação.
A ideologia dominante no futebol confunde os seus enunciados com a afirmação de uma lei não dita, mas incontestável. A noção corrente de “justiça” nos resultados é o modelo banal de tal autoritarismo, permanecendo por esclarecer porque é que a vitória de uma equipa que joga “mal” põe em causa um qualquer princípio de justiça... Como espectador de futebol, gostaria que alguém se assumisse, não como juiz vingador, antes como observador empenhado em partilhar o prazer do próprio jogo... Com uma ressalva: dizer que dou a veleidade de reconhecer a injustiça de isto ser uma asserção minha.