terça-feira, janeiro 14, 2014

Wall Street por Scorsese (2/2)

Admirável cineasta! Dezoito anos depois do seu Casino, Martin Scorsese dirige Leonardo DiCaprio para voltar a desmontar os circuitos do dinheiro em O Lobo de Wall Street — este texto foi publicado no Diário de Notícias (7 Janeiro), com o título 'O dinheiro e outras drogas segundo Scorsese'.

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Quando adiam para uma data mais ou menos indefinida a revelação de uma determinada decisão ou medida, os protagonistas da cena política gostam de dizer que se instaurou um “tabu”. De facto, confundem o banal malabarismo político com a presença do sagrado. Porque o tabu é, justamente, uma interdição que define ou postula algo de transcendente – sobretudo algo que se pode virar contra nós.
Martin Scorsese é um dos raros artistas contemporâneos que arrisca filmar o dinheiro como o supremo tabu. Ou seja: não como instrumento de equivalências de valor e trocas sociais, antes como assombramento que se insinua em todos os lugares e objectos, enfim, em todas as relações humanas.
Que se passa, então, em O Lobo de Wall Street? Uma profunda e perturbante tragédia, mesmo se o filme, por ironia ou desespero, vai aceitando confundir-se com uma comédia negra. Na vertigem nunca apaziguada de Jordan Belfort (Leonardo DiCaprio), tudo se pode equivaler: um iate, uma linha de cocaína ou o sexo de uma prostituta... O dinheiro está longe de ser apenas aquilo que permite comprar tudo isso. Ao mesmo tempo, o dinheiro é a “coisa” que instaura essa equivalência sem nome em que tudo isso pode ser reconvertido no seu duplo ou no seu contrário, segundo uma lógica espectacular e apocalíptica, potencialmente sem fim.
Se Scorsese ainda tivesse alguma ilusão utópica (e sabemos que o inglês Michael Powell, autor de Os Sapatos Vermelhos, é um dos seus mestres), filmaria, talvez, fábulas sobre paraísos não contaminados pela circulação do dinheiro. Assim, o sua obra tende para o desencanto humanista que perpassa em O Lobo de Wall Street: o dinheiro é um fantasma que, de forma maligna ou não, habita todos os corpos. O cinema, enfim, ainda detém o poder de nomear os tabus.