quinta-feira, janeiro 23, 2014

De Bertolucci a Lars von Trier

Será que o novo filme de Lars von Trier, Ninfomaníaca, pode ser também um sinal de uma velha forma de difusão? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (19 Janeiro), com o título 'O regresso dos "filmes em partes"'.

Em momento dominado pelas estreias dos candidatos a Oscars (e vale a pena sublinhar que este é um ano invulgar, recheado de filmes magníficos, a começar pelo genial O Lobo de Wall Street, de Martin Scorsese), há um outro acontecimento que importa não menorizar. De facto, o novo filme do dinamarquês Lars von Trier, Ninfomaníaca – Parte I, envolve um duplo fenómeno: por um lado, vem discutir as formas correntes de representação da sexualidade e, em particular, a sua orientação predominantemente masculina; por outro lado, o seu lançamento em duas etapas (a segunda está agendada para o próximo dia 30) sugere a curiosa e interessante possibilidade de renascimento dos “filmes em partes”.
Esta singularidade do lançamento de Ninfomaníaca merece alguma atenção, uma vez que transcende a mera solução “prática” de dividir um filme (de quatro horas) em duas partes, por certo para gerar expectativa, mas também para não contrariar os hábitos de consumo. O que aqui reencontramos é também a possibilidade de o cinema explorar a noção de série como elemento corrente da sua existência artística e comercial (e não há nenhuma razão para continuar a alimentar o preconceito segundo o qual uma coisa e outra têm de ser pensadas, obrigatoriamente, como factores opostos).
Não estamos perante a noção corrente de “franchise”, tal como tem sido aplicada em casos como “Harry Potter” ou “Twilight”, de alguma maneira duplicando a própria organização dos livros que adaptam. No limite, podemos dizer que se vislumbra a hipótese, ainda que remota, de a produção cinematográfica redescobrir o espírito primitivo dos “serials” que, sobretudo nas décadas de 1930/40, exploraram temas e mitologias do Oeste americano, do policial ou da ficção científica.
E escusado será dizer que não se trata de explorar a noção de sequela que, mal ou bem (muitas vezes muito mal...), tem marcado o cinema das últimas décadas. Um caso idêntico ao de Ninfomaníaca ocorreu há quase quarenta anos com o épico Novecento (1976), do italiano Bernardo Bertolucci (entre nós lançado com o título 1900). Curiosamente, ambos os filmes são assinados por autores europeus, mobilizando actores da Europa e dos EUA – o elenco de Bertolucci incluía Robert De Niro, Gérard Depardieu, Dominique Sanda, Sterling Hayden e Alida Valli.
É óbvio que não há generalizações automáticas para estes fenómenos. Ainda assim, o eventual impacto de Ninfomaníaca pode ajudar a reforçar uma ideia que assombra os mercados contemporâneos: tendo em conta a crise do consumo tradicional dos filmes, importa experimentar os mais diversos modelos de distribuição/exibição. O ano passado, o reforço das reposições de títulos clássicos e o retorno da projecção IMAX foram sintoma disso mesmo. Afinal de contas, o que importa não banalizar é a própria sala escura como lugar indissociável do prazer cinéfilo.