O iraniano Asghar Farhadi continua a mostrar-se um subtil analista das nuances do espaço conjugal — este texto foi publicado no Diário de Notícias (26 Dezembro), com o título 'Elogio das personagens'.
Numa altura em que tanto se fala de “globalização” e comunicação entre “culturas”, a maior parte dos discursos em torno de tais fenómenos favorecem uma visão “generalista” dos seres humanos e respectivas relações. O espelho disso mesmo é a proliferação do pitoresco.
Apetece dizer que o iraniano Asghar Farhadi filma contra tais vícios “globais”. Não que o seu cinema não possua uma contagiante energia universal. Lembremos o admirável Uma Separação (2011), título que lhe valeu um Urso de Ouro em Berlim e um Oscar de melhor filme: por um lado, podíamos projectar-nos numa complexa história de divórcio; por outro lado, a abordagem das atribulações conjugais construía-se a partir de uma metódica inserção na sociedade do Irão, permitindo-nos aceder um pouco aos valores dominantes no seu quotidiano.
O Passado prolonga, dir-se-ia de forma didáctica, os temas do filme anterior. Com uma variante que está longe de ser banal: desta vez, a acção passa-se em França, apresentando-nos um triângulo formado por Ahmad (Ali Mosaffa), que chega do Irão para concluir os procedimentos legais do seu divórcio com Marie (Bérénice Bejo) que, por sua vez, já partilha a sua vida com Samir (Tahar Rahim). E se é verdade que tudo isto coloca em cena uma teia de confrontos que não podemos separar das raízes geográficas e culturais de cada personagem, não é menos verdade que Farhadi em nenhum momento comete o pecado metafórico, e muito televisivo, de reduzir as suas personagens a “bandeiras” do que quer que seja.
Os mais cínicos dirão que tais peripécias podiam servir de base a uma telenovela. Justamente: compare-se os respectivos tratamentos e veja-se a diferença entre a vulgaridade humana do formato televisivo e a complexidade afectiva de um cinema que não cede à demagogia do lugar-comum.