Apetece propor uma muito primária leitura "psicanalítica" deste cartaz de Homem de Ferro 3: apesar de o seu elenco ser liderado por um dos grandes actores contemporâneos, Robert Downey Jr., o seu nome não é citado... Porquê? Porque há um cinema que, mesmo quando as suas características não o justificam, vive parasitado por um tipo de marketing que ignora os actores (além de que o talento de Downey Jr. se encontra, neste caso, literalmente enlatado). Daí a simples e empenhada evocação: algum do mais interessante cinema contemporâneo passa pela arte de representar (com mais ou menos derivações digitais). Aqui ficam algumas memórias soltas de 2013, através de homens e mulheres que, decididamente, estão muito longe de poder ser substituídos por efeitos especiais.
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* ANIELLLO ARENA
> Reality, de Matteo Garrone
O cinema, felizmente, resiste ao horror "natural" do Big Brother. Na personagem de um concorrente enredado na teia da versão italiana do programa, Aniello Arena supera qualquer estereotipo, expondo um paradoxal processo de desumanização.
* MICHAEL DOUGLAS
> Por Detrás do Candelabro, de Steven Soderbergh
Como representar a sexualidade de Liberace? Talvez começando por contornar a hiper-sexualização e revelando a solidão. O filme é um... telefilme e, por isso, o génio de Michael Douglas não poderá chegar aos Oscars.
* CATE BLANCHETT
> Blue Jasmine, de Woody Allen
Woody Allen sabe onde colher inspiração: Tennessee Williams, Um Eléctrico Chamado Desejo. E Cate Blanchett sabe que é tudo teatro, no sentido em que cada movimento de pálpebras compromete a coerência do cosmos. Faz medo, claro.
* RACHEL WEISZ
> O Profundo Mar Azul, de Terence Davies
Que se espera de um actor? De uma actriz? Que se entregue, sem mágoa nem ressentimento, à insensatez que um filme pode conter. Terence Davies filma como se o melodrama fosse a linguagem dos deuses e Rachel Weisz não o desmente.
* MAX THIERIOT
> Desligados, de Henry Alex Rubin
Neste espantoso labirinto assombrado pela Internet (porventura o mais ignorado filme do ano), Max Thieriot interpreta o prisioneiro "feliz" de um show erótico — raras vezes vimos a solidão que se desconhece representada com esta subtileza.
* OPRAH WINFREY
> O Mordomo, de Lee Daniels
Oprah como especialista do underacting: na fronteira instável entre a história utópica do marido (mordomo na Casa Branca) e a crueza do dia a dia (incluindo a sua dependência do álcool), ela é a personagem secundária em que tudo ecoa.
* SASKIA ROSENDAHL
> Lore, de Cate Shortland
No desamparo da sua personagem — uma filha de um oficial nazi, em 1945, quando a derrota da Alemanha é irreversível —, Saskia Rosendahl consegue pôr em cena a descoberta brutal do Holocausto. Acedemos a um perturbante intimismo.
* OSCAR ISAAC
> A Propósito de Llewyn Davis, de Joel e Ethan Coen
Se existisse uma versão zombie de Bob Dylan, chamar-se-ia Llewyn Davis. Oscar Isaac consegue representá-lo, celebrando a música folk e nunca cedendo à banalização psicológica. Além de que o gato ameaça roubar todas as cenas.
* BRADLEY COOPER
> Como um Trovão, de Derek Cianfrance
Cruel problema expressivo: codificado como actor "ligeiro", mais ou menos galã, Bradley Cooper possui dotes dramáticos invulgares — o polícia assombrado por uma culpa sem nome é uma espantosa personagem, visceralmente trágica.
* AMY ADAMS
> O Mentor, de Paul Thomas Anderson
Transparente ou indecifrável, Amy Adams pode representar tudo e o seu contrário. Na circulação entre pólos opostos, baralhando todas as nossas certezas. Aqui, ela está no coração do poder mais absoluto, expõe o terror repetindo gestos angelicais.
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Porque é que a exaltação dos actores quase só se faz através dos filmes que são grandes sucessos de bilheteira? Por uma razão muito simples: a ideologia mediática dominante reduz a vida artística do cinema aos tops de receitas... Assim, não há actor mais celebrado pela sua capacidade de transfiguração do que Johnny Depp, mas a partir do momento em que o brilhantíssimo O Mascarilha, de Gore Verbinski, se revelou um enorme falhanço comercial, parecia que muitas notícias eram escritas por quem tinha acções nos estúdios Disney — experimentem representar com um pássaro morto agarrado à cabeça e depois voltamos a fazer contas...