segunda-feira, dezembro 16, 2013

A “solução” dos Gato Fedorento


1. A apresentação do programa A Solução, dos Gato Fedorento (SIC) tem constituído uma notícia, no mínimo, controversa. Num programa de cerca de dez minutos, Rodrigo Guedes de Carvalho entrevistou Ricardo Araújo Pereira, José Diogo Quintela, Tiago Dores e Miguel Góis, questionando-os sobre as medidas que preconizam para resolver a “crise” de Portugal. As respostas do grupo envolveram, no essencial, o projecto de contratação de Steven Seagal para uma operação de “comandos” contra Passos Coelho e alguns ministros...

2. O assunto tem sido objecto de muitos reparos e especulações, com a já habitual multiplicação de ecos garantida pelas chamadas “redes sociais”. Por um lado, compreendo e respeito o valor de troca que muitos cidadãos atribuem a tais circuitos; por outro lado, neste caso como em muitos outros, não posso deixar de reconhecer que a proliferação de “mensagens” tende a ser dominada pelas atitudes mais pueris, mesquinhas, grosseiras, insultuosas ou difamatórias, justificando, no mínimo, que discutamos a não coincidência entre a multiplicação do tráfego virtual e a saúde democrática.

3. Tento, por isso, condensar a principal linha de força das intervenções que castigaram A Solução com severos juízos éticos e profissionais (esperando que se compreenda que não está em causa a boa fé de tais juízos que, escusado será dizer, não confundo com a fulanização ofensiva que, não poucas vezes, se tornou lei dominante nas mesmas “redes sociais”). Assim, Rodrigo Guedes de Carvalho teria protagonizado um grave desvio deontológico, uma vez que a sua intervenção rasurou a fronteira entre “informação” e “divertimento”.

4. A meu ver, o primeiro grande problema estrutural deste pensamento é o de dar como adquirida a transparência universal e universalista dos conceitos que aplica (um pouco como a classe política, há décadas encalhada na noção de “serviço público” de televisão, mas continuando a agitar-se num pântano de ideias em que nada adquire consistência programática, muito menos pertinência política). De facto, para o melhor e para o pior, o jornalismo evoluiu através de parâmetros cada vez mais miscigenados em que não faz sentido supor que alguém se pode colocar num território em que “informar” se confunde com o enunciar de uma verdade inquestionável, sendo “divertir” uma actividade que não tem qualquer relação com qualquer realidade nomeável.

5. Parece-me, acima de tudo, uma facilidade pouco edificante transformar um profissional como Rodrigo Guedes de Carvalho em bode expiatório daquilo que, isso sim, creio eu, deveria ser activamente identificado e discutido, antes do mais no interior da própria classe jornalística. A saber: a degradação de padrões profissionais e deontológicos todos os dias reforçada pela proliferação de um jornalismo medíocre, muitas vezes de tom rosáceo, em que o mundo, mesmo através de notícias “objectivas”, é representado como um labirinto de escândalos ou difamações em que a única coisa que conta (sublinho: a única coisa que conta) é poder rotular um qualquer ser humano de demónio repugnante ou vítima esfrangalhada — assim mesmo, sem alternativa, com o espaço humano reduzido ao mais estúpido dos maniqueísmos.

6. Em todo o caso, o que mais me choca na denúncia (sendo, aqui, a noção de denúncia uma herança difusa de um imaginário de esquerda banalmente persecutório) dos Gato Fedorento e Rodrigo Guedes de Carvalho é o implícito atestado de estupidez que é passado ao cidadão/espectador comum. Que é como quem diz: há discursos de “purificação” da actividade jornalística que receiam que esse cidadão/espectador, na comovente candura que o aproxima de um frágil recém-nascido ou, talvez, do homem de Neandartal, tenha ficado perturbado pelo facto de saber que há notícias fidedignas que indicam que Steven Seagal deve estar a aterrar algures no território português, munido de armas para disparar alguns tiros nos testículos do primeiro-ministro...

7. Qualquer juízo de valor sobre a performance artística seja de quem for é, aqui, irrelevante. Em última instância, o que importa reter é que a lamentável desqualificação moral e profissional a que os Gato Fedorento e Rodrigo Guedes de Carvalho estão a ser sujeitos seja feita em nome de um conceito imberbe de espectador. Aliás: do espectador como ser irremediavelmente imberbe. Provavelmente, a celebração do espectador como ser adulto e responsável tornou-se uma lacuna em toda a nossa reflexão jornalística.