domingo, novembro 10, 2013

O vermelho de Carrie

Como refazer o clássico de Brian de Palma? Kimberly Peirce tem a serenidade suficiente para fazer a sua versão de Carrie, de Stephen King, sem "duplicar" o original feito há quase quarenta anos — este texto foi publicado no Diário de Notícias (31 Outubro), com o título 'Elogio do vermelho e do negro'.

Nestes tempos de vulgarização da manipulação digital das imagens, não é todos os dias que deparamos com um filme capaz de abrir com uma cena de crua intensidade, contaminando toda a sua construção dramática. Assim, sem qualquer prólogo redundante, jogando mesmo contra as memórias cinéfilas do primeiro Carrie (1976), de Brian de Palma, Kimberly Peirce filma o nascimento de Carrie White (Chloë Grace Moretz) como uma trágica apresentação da personagem da sua mãe (Julianne Moore); aquilo que, há mais de trinta anos, era uma primeira estilização do bailado barroco do Bem e do Mal, surge tratado por Peirce como um assombramento literal do corpo.
Estamos perante os medos de uma América interior, habitada por uma culpa indissociável das manifestações mais extremas de fanatismo religioso. Em todo o caso, Peirce não cede à facilidade de fazer um filme sobre a “alienação” religiosa (tal como Brian de Palma, convém lembrar). Não estamos perante nenhuma purificação “sociológica”, à maneira de um telefilme banal: distanciando-se de qualquer redenção feminista, Carrie é uma fábula sobre a maternidade vivida, não como destino, mas como fantasma do corpo. Na histeria habitada pela mãe de Carrie, a prova material da fecundidade do seu corpo (isto é, a própria Carrie) é mesmo uma entidade que está a mais.
Em Os Rapazes Não Choram (1999), Peirce filmava uma jovem mulher (Hilary Swank) que assumia uma identidade masculina, escapando a qualquer efeito normativo da diferença sexual. Agora, com Carrie, encena o esvaziamento simbólico da relação mãe/filha até um limite que se exprime apenas através do delírio material do sangue. Estamos, assim, perante uma cineasta que filma o imaginário feminino como um continente negro, aliás, vermelho. Tenham medo.