quinta-feira, outubro 10, 2013

"Mahjong", Vila do Conde e o resto do mundo

Uma curta-metragem portuguesa, Mahjong, de João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata, relança o mistério dos lugares e também a sua insólita familiaridade — este texto foi publicado no Diário de Notícias (5 Outubro), com o título 'Mapas e aventuras do olhar'.

De que falamos quando falamos de um lugar? Ou ainda: como é que, ao filmarmos um lugar, o transformamos noutro lugar, imaginado, imaginário, porventura utópico? João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata têm lidado com essas questões naquele que é, por certo, o mais fascinante capítulo asiático da história do cinema português. Primeiro com a curta-metragem Alvorada Vermelha (2011), depois com a longa A Última Vez que Vi Macau (2012), deambulações de um realismo onírico apostado em discutir a própria possibilidade de testemunhar a relação sempre ambivalente entre as histórias pessoais e as correntes da vida colectiva.
Mahjong, de novo em registo curto, prolonga esse labirinto criativo, agora descobrindo os sinais do continente asiático na região de... Vila do Conde. Pitoresco? Talvez, nos primeiros sinais com que identificamos toda uma iconografia que provém de paragens distantes. Mas o pitoresco não é um elemento compulsivo: está na cabeça do espectador e o filme vem desafiá-lo para além da confirmação daquilo que já sabe (ou julga saber). Mahjong desenvolve-se, então, como um jogo de coisas materiais e desejos ocultos que, através de uma calculada ironia, convoca memórias e mitologias do clássico filme “noir” americano.
Em que lugar nos descobrimos, então? Digamos que, mesmo na sua contida duração (cerca de meia hora), Mahjong consegue reencontrar esse poder primordial do cinema que consiste, não em “reproduzir” a geografia do mundo, mas em inventar um mapa para as aventuras do olhar.
Se é verdade que viver livre é “olhar à sua volta”, então este é um filme que nos ensina que vale a pena não deixar de contemplar a pluralidade dos seres e objectos. Aceitando a vertigem do visível e a hipótese do invisível.