sábado, outubro 05, 2013

Gastão Cruz: poesia e cinefilia

Elizabeth Taylor
BRUSCAMENTE NO VERÃO PASSADO (1959)
Através de um livro de Gastão Cruz reencontramos o fogo primitivo do olhar e da cinefilia — este texto foi publicado no Diário de Notícias (22 Setembro), com o título 'No cinema com Gastão Cruz'.

É um livro breve, belíssimo, de Gastão Cruz: Fogo (Assírio & Alvim, 2013) reúne quarenta e dois pequenos poemas escritos sob o signo do cinema. São quarenta e duas viagens que integram “a luz informe da paisagem” como uma dádiva paradoxal através da qual podemos redescobrir o valor primitivo das imagens e o modo como nelas, e através delas, sabíamos experimentar o indizível da vida nelas representada. Nesse tempo tão próximo, vida vivida e vida representada eram duas faces de uma intriga encantada e encantatória cujo enigma não precisava de ser resolvido. De facto, nem saberíamos como enunciá-lo: “Íamos ao cinema com dinheiro / emprestado e comíamos depois num / snack-bar e isso / podia parecer o paraíso / se tal palavra para nós fizesse / algum sentido ou tivéssemos / sequer plena consciência do vivido”.
Lembrei-me de Bruscamente no Verão Passado (1959), o filme de Joseph L. Mankiewicz baseado na peça de Tennessee Williams. Desde logo, porque o texto de Williams é citado pelo autor, evocando duas frases da personagem de Mrs. Venable (Katharine Hepburn no filme), e também porque Catherine (Elizabeth Taylor) é nomeada no poema em que se fala de actores e personagens, lembrando que “conhecíamos os seus corpos unívocos”. Lembrei-me também por causa da fixação em torno da frase do cartaz original do filme, evocando as angústias da (minha) adolescência: “Bruscamente no Verão passado, Cathy percebeu que estava a ser usada para algo de maligno.”
Atrevo-me a convocar tal memória por fidelidade ao movimento interior do livro, pontuando o labor da memória (“Respondo com palavras ao silêncio”) com referências múltiplas ao cinema, à fotografia ou ao teatro inglês (Joe Orton, Edward Bond); reaparecem mesmo personagens de Uma Abelha na Chuva, o romance de Carlos de Oliveira e o admirável filme de 1972 realizado por Fernando Lopes. São sinais de uma resistência poética, quer dizer, política a uma circulação fútil das imagens em que a promoção do conflito (observe-se o infantilismo “cinéfilo” de muitos blogs) anulou qualquer forma de interrogação, de si e dos outros, através dessas mesmas imagens.
Irresistível metáfora: se é verdade que o “fogo” do título (e de muitos poemas) convoca uma energia primordial em que as chamas devoram o que, ainda assim, sabemos não esquecer, não é menos verdade que o podemos associar à claridade da projecção cinematográfica, iluminando o território virgem do ecrã. Gastão Cruz escreve sob o signo de uma cultura das imagens que não se deixou corromper pela promiscuidade intermutável de muitas mensagens televisivas. Daí que o olhar, mesmo tendendo para a abstracção, nunca banalize a verdade dos corpos: “Existiam então esses momentos / que a câmara / do tempo não retinha? Ao rio das / manhãs não voltaríamos? / São as coisas concretas as mais claras / o suor o quarto a roupa abandonada.”