domingo, outubro 20, 2013

Filmar o Holocausto (2)

'A Lista de Schindler'
'The Grey Zone'
'O Pianista'

Esta é a segunda parte de um artigo sobre as representações do Holocausto no cinema, originalmente publicado na edição de 12 de outubro do suplemento Q. do DN com o título ‘Quando o grande ecrã não pode fazer silêncio’.

Se o monumental Shoah, de Claude Lanzmann, pode, juntamente com o não menos arrepiante Noite e Nevoeiro de Alan Resnais, construir um par de exemplos paradigmáticos de como o cinema documental olhou já as memórias do Holocausto, o filme de 1993 de Steven Spielberg, A Lista de Schindler, representa também uma referência marcante de uma busca por um sentido de realismo. Baseado num livro de Thomas Keneally, o filme recorda factos verídicos com sede em Cracóvia, lembrando um industrial alemão que “comprou” a vida de uma multidão de judeus que empregou na sua fábrica e que assim escaparam ao destino (ler Auschwitz- -Birkenau) que esperou muitos dos que habitavam o gueto da cidade. Parte da ação foi rodada na própria fábrica de Schindler, em Cracóvia (perto da zona em que foi delimitado o gueto), que hoje alberga um museu sobre a ocupação alemã da Polónia e do próprio Holocausto.

O ponto de vista da câmara numa das sequências mais marcantes do filme de Spielberg, aquela em que vemos um grupo de mulheres chegando a Auschwitz-Birkenau, sendo conduzidas ao que julgamos ser uma câmara de gás (e afinal se revela apenas um banho), é comparada, por Aaron Kerner, ao olhar de Norman Bates no Psico de Hitchcock nos momentos que antecedem a famosa cena do chuveiro. Diferente é o olhar que o autor aponta em The Grey Zone, filme de Tim Blake Nelson que evoca a revolta do sonderkommando (5) em Auschwitz-Birkenau e que nos transporta direta e violentamente para o interior das câmaras de gás após um gaseamento.

Sem sequer passar pelos espaços dos campos de extermínio (estando contudo representadas as partidas de comboios para Treblinka), O Pianista, de Roman Polanski, é outro dos exemplos maiores no retratar deste tempo, focando sobretudo o espaço desumano do dia a dia que se viveu no gueto de Varsóvia. Tal como em A Lista de Schindler, houve imagens captadas na própria cidade, todavia no bairro de Praga (que não corresponde à zona fechada que representou o gueto), uma vez que ainda guarda exemplos da arquitetura da época. Pelo contrário, o campo de Auschwitz-Birkenau que vemos em The Grey Zone foi cenário construído na Bulgária. O campo real, hoje transformado num museu, aceita apenas a captação de imagens para o cinema documental.

A história do cinema de ficção dedicado a memórias do Holocausto é quase tão antiga quanto a tomada de consciência pelo mundo do que então ocorreu. A esmagadora maioria dos títulos recorda sobretudo o destino dos cerca de seis milhões de judeus exterminados. Mas convém não esquecer que, entre soldados russos capturados, prisioneiros políticos, gentes de outras etnias (nomeadamente ciganos), homossexuais e outros grupos mais há também memórias a recordar. Paragraph 175, filme de 2000 de Rob Epstein e Jeffrey Friedman, recorda precisamente as perseguições do poder nazi a homossexuais e o seu envio para campos de concentração.

Seria fastidioso fazer uma lista dos títulos mais importantes ou que souberam acrescentar novos olhares sobre uma etapa da história que ainda gera inúmeros trabalhos de investigação por parte de historiadores (e basta consultar os relatórios anuais do Museu de Auschwitz-Birkenau para ter uma noção desse esforço em curso). Mas vale a pena enumerar casos como Lang Ist Der Weg, de Herbert B Ferdesorf e Marek Goldstein, que em 1949 assinalou a primeira abordagem de produção alemã a este universo ou uma primeira incursão pelos Diários de Anne Frank, por George Stevens (1959), que arrebataram três Óscares. São vários os títulos da cinematografia polaca a abordar este espaço histórico, entre eles Korczak (Andrej Wazda, 1990) sobre um dos heróis do gueto de Varsóvia, ou o mais recente e espantoso In Darkness (Agnieszka Holland, 2011).

De títulos mais mediatizados como A Vida É Bela (1997), de Roberto Benigni, O Leitor (2008), de Stephen Daldry, ou O Rapaz do Pijama às Riscas (2008), de Mark Herman, ou títulos menos “populares” como The Grey Zone ou In Darkness, a lista de filmes é extensa, justificando já abordagens de conjunto precisamente como a que Aaron Kerner propõe em Film and The Holocaust.

'O Porteiro da Noite'
Transcendendo os espaços dos campos, o tempo da guerra e os próprios percusros narrativos mais frequentes, os ecos do Holocausto habitam depois filmes tão diferentes como The Pawnbroker (Sidney Lumet, 1964), que acompanha um sobrevivente de um campo de concentração que faz agora o seu dia a dia num gueto nova-iorquino ou O Porteiro da Noite (Liliana Cavani, 1974), que explora uma abordagem erótica fetichista entre uma antiga prisioneira e um ex-oficial das SS. No seu livro, Aaron Kerner lembra ainda o monumental Salò ou 120 Dias de Sodoma de Pasolini (1975) como um exemplo de abordagem alegórica às memórias não apenas do Holocausto, mas também do fascismo. Também sem passar pelos campos de concentração, consciente de que o espectador sabe que destino esperava certamente a quem para eles seguiria, Au Revoir Les Enfants (Louis Malle, 1987) é outra das obras-primas de um cinema de ficção que toma o Holocausto como contexto onde evolui uma trama. Trata-se de uma abordagem autobiográfica, lembrando como tantas histórias reais habitam este universo cinematográfico, que acolheu recentemente uma representação portuguesa com O Cônsul de Bordéus, filme de 2012 de João Correia e Francisco Manso.

Convém lembrar que nem toda a produção já realizada para cinema e televisão com o Holocausto por universo histórico ou narrativo a explorar gera as mesmas reações de aclamação, muito menos de unanimidade. Houve até um caso gerador de particulares respostas negativas. Trata-se da série televisiva da NBC Holocausto (1978), que Elie Wiesel descreveu logo na época, no New York Times, como “falsa e ofensiva”. Lanzmann contestou, por exemplo, o modo cordato como a série retratava o momento em que, placidamente, cada um aguardava a sua morte. “Na vida real as coisas eram diferentes. Depois de anos de aprisionamento num gueto, de terror, humilhação e fome, as pessoas que se alinhavam em filas de cinco pessoas ou eram conduzidas sob chicotes e empurradas umas contra as outras quando entravam nas câmaras de morte não tinham a vontade nem a compostura para morrer de forma nobre.” O realizador lembrou que, mesmo podendo ser um filme um trabalho de ficção, o que a série fez foi a projeção de algo falso, apontando-a como algo que assassina a memória. Porém, adverte Kerner, Holocausto pode ter tido “maior efeito material” (na projeção de uma consciência global do que foi o Holocausto) que “todas as outras representações combinadas” (6). Por isso mesmo dirige o seu livro no sentido de explicar que não basta avaliar questões de autenticidade quando se enfrenta este cinema, sendo importante avaliar também a forma como o filme acaba por comunicar com quem o vê.

(5) Os Sonderkommando eram uma unidade constituída por prisioneiros dos campos de concentração que trabalhavam diretamente nas câmaras de gás e crematórios. A 7 de outubro de 1944 um grupo de sonderkommando em Auschwitz protagonizou a primeira grande revolta dentro do espaço de Birkenau.

(6) in Film and The Holocaust, de Aaron Kerner (Continuum, 2011), pág 30, numa citação de From the Holocaust to Holocaust, de Stuart Liebman, um dos ensaios publicados em Claude Lanzmann’s Shoah: Key Essays, lançado em 2007 pela Oxford University Press.