quinta-feira, outubro 03, 2013

A morte lenta da cinefilia

Cate Blanchett, Woody Allen e Alec Baldwin
— rodagem de Blue Jasmine
Como vai o mercado cinematográfico? Em alguns aspectos, à deriva... Ainda há espectadores cinéfilos? Cada vez menos... Resta o essencial, isto é, os filmes, mas é preciso criar condições para que sejam vistos — este texto foi publicado no Diário de Notícias (29 Setembro).

Na imprensa cinematográfica anglo-saxónica, começaram a proliferar as especulações sobre a possibilidade de a interpretação de Cate Blanchett, em Blue Jasmine, de Woody Allen, lhe garantir o próximo Oscar de melhor actriz, a atribuir na 86ª edição dos prémios da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood (2 de Março de 2014). Entretanto, há poucos dias, os nomes de Michael Douglas e Steven Soderbergh estiveram em destaque pelos Emmys que conquistaram graças a Por Detrás do Candelabro (respectivamente, melhor actor e melhor realizador na categoria de mini-série ou telefilme). Enfim, para a próxima quinta-feira [hoje], no mercado português, estão anunciados os lançamentos de catorze filmes...
Que há de comum entre tudo isto? Pois bem, são sinais dispersos da conjuntura global do cinema que, em última instância, podem ser lidos como sintomas esclarecedores da sua actual dinâmica. Desde logo, através de um bizarro sentimento de absurdo. Assim, não há muitos meses, analistas da mais poderosa indústria audiovisual do planeta temiam pela saturação do mercado americano devido ao lançamento de seis novos títulos numa mesma semana... Por cá, vamos ter catorze... Convém lembrar, a propósito, que o número de ecrãs nos EUA é mais de setenta vezes superior ao de Portugal!
Consequência prática: mesmo que as estreias sejam imaculadas obras-primas, como vai ser possível os espectadores interessados verem aquilo que lhes interessa? Isto sem esquecer que, de acordo com as tendências correntes, a maioria desses filmes poderá nem sequer estar disponível nas salas mais do que uma semana... Num país em que, em média, cada cidadão vai 1,5 vezes por ano ao cinema...
Convém não sermos ingénuos. Claro que o mapa do consumo cinematográfico se alterou radicalmente e, na prática, há mais espectadores a ver filmes para além das salas (cujas receitas, há cerca de uma década, deixaram de ser o factor dominante no cálculo dos lucros). Quer isto dizer também que o tradicional espectador cinéfilo – que vivia com expectativa, para não dizer paixão, a revelação dos filmes nas salas – é uma entidade em vias de extinção. Mais do que isso: alguns dos grandes talentos do cinema, precisamente os que fazem filmes como Por Detrás do Candelabro, estão a fazê-los para... televisão.
Não admira que haja todo um discurso de “apostas” sobre os Oscars e, de um modo geral, a avalancha de eventos da chamada “temporada de prémios”, reduzindo o cinema a uma competição pueril e fútil, dir-se-ia um banal concurso de... televisão. O problema não está, como é óbvio, nesse filme maravilhoso que é Blue Jasmine. O problema está no facto de quase nada se dizer sobre a complexidade narrativa de Woody Allen ou o modo como Cate Blanchett herda toda uma gloriosa tradição de representação. Era isso, pelo menos, que um cinéfilo saberia ver e valorizar.