Ao longo de várias décadas, o francês Claude Lanzmann tem desenvolvido um trabalho exemplar e obsessivo sobre as memórias do Holocausto. Com a edição em DVD do seu filme monumental Shoah, podemos descobrir ou redescobrir uma obra fundamental do cinema do séc. XX — este texto foi publicado no suplemento "QI", do Diário de Notícias (12 Outubro), com o título 'O Holocausto através das palavras do cinema'.
No dia 19 de Maio de 2013, o Festival de Cannes exibiu, extra-competição, o filme Le Dernier des Injustes, de Claude Lanzmann, uma evocação do Holocausto organizada a partir de uma entrevista com o rabino Benjamin Murmelstein (1905-1989), dirigente judeu, “eleito” pelos nazis, no campo de concentração de Theresienstadt. Lanzmann registara a entrevista em meados da década de 70, durante a rodagem de Shoah (1985), o seu filme monumental sobre o extermínio dos judeus pela máquina de guerra de Adolf Hitler, mas não a incluíra na montagem final; Le Dernier des Injustes nasce da conjugação dessa entrevista com a revisitação de alguns lugares de extermínio dos judeus, funcionando o próprio Lanzmann como guia histórico e cinematográfico.
Nesse dia, na sala Debussy do Palácio dos Festivais de Cannes, Thierry Frémaux, delegado-geral do certame, integrou na sua apresentação de Lanzmann, actualmente com 87 anos, uma referência a um episódio singular a que, na véspera, ele próprio assistira. Assim, Frémaux congratulou-se por ter podido testemunhar uma conversa entre Lanzmann e Steven Spielberg (1), presidente do júri oficial. Não se tratava, como é óbvio, de revelar o conteúdo do diálogo. Em todo o caso, a simples menção do evento envolvia uma mensagem muito concreta: afinal, apesar de Lanzmann ter escrito um dos mais contundentes artigos contra o filme de Spielberg sobre o Holocausto, A Lista de Schindler (1993), o diálogo era possível e, terá querido sublinhar Frémaux, historicamente necessário e pedagogicamente salutar.
Agora que temos a oportunidade de (re)descobrir a cópia restaurada de Shoah em DVD – e é nessa área, sem qualquer hesitação, o acontecimento do ano –, torna-se inevitável relembrar a clivagem Lanzmann/Spielberg. E não apenas porque nela podemos detectar as diferenças de linguagem de dois criadores profundamente tocados pela memória do Holocausto (Spielberg tem 66 anos, tendo nascido no ano em que Lanzmann completou 21). Acontece que a tensão conceptual e a distanciação estética que se desenha entre Shoah e A Lista de Schindler condensa um drama moral e narrativo que tem marcado, não apenas a comunidade judaica, mas toda a reflexão filosófica sobre a arte pós-Holocausto.
Podemos reconhecer que ambos os campos se definem a partir de uma obstinada coerência interna, porventura mais visceralmente “documental” no trabalho de Lanzmann, mais apostada nas derivações “fictícias” na obra de Spielberg. Em todo o caso, para compreendermos aquilo que os separa teremos de considerar que, no limite mais drástico, se separam no próprio entendimento material do cinema.
Para Lanzmann, o Holocausto envolve um horror que “não pode ser representado”. Mais do que isso: ele vê a ficção como uma “transgressão” que anula o carácter único e irredutível do Holocausto (texto disponível em no site da Universidade de Utrecht). No caso de Spielberg, o cinema emerge como uma máquina global de comunicação, enraizada numa tradição de partilha de saber que, além do mais, pode contrariar a facilidade com que, hoje em dia, observamos a circulação da “informação”. Já este ano, por ocasião do lançamento dos DVD e Blu-ray comemorativos dos vinte anos de A Lista de Schindler, chamou a atenção para isso mesmo (The Hollywood Reporter, 27 Fev.): “Por vezes, parece ainda haver pessoas imunes à noção de empatia ou compaixão. Pessoas que vêem imagens perturbantes nos media, na televisão, digamos um clip do YouTube sobre violência gratuita, discriminação ou agressão, mantendo-se em silêncio. (...) E chego à conclusão que, em muitos casos, a tecnologia se está a tornar mais um veículo de voyeurismo do que uma hipótese de mudança.”
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(1) STEVEN SPIELBERG (n. 1946) – Desde Tubarão (1975), transformou-se em símbolo universal de um conceito de espectáculo made in USA. Realizador e produtor de grandes sucessos como E.T. (1982) ou os filmes da saga de Indiana Jones, já ganhou dois Oscars de realização por A Lista de Schindler (1993) e O Resgate do Soldado Ryan (1998).