sábado, setembro 07, 2013

Ozu x 2

Desde quinta-feira (5 Setembro), nas salas portuguesas, podemos (re)descobrir duas obras-primas de Yasujiro Ozu: é também uma maneira de avaliarmos a modernidade como uma coisa relativa — este texto foi publicado no Diário de Notícias (2 Setembro), com o título 'Sob o signo de Yasujiro Ozu'.

A partir desta quinta-feira, os espectadores de Lisboa e Porto vão poder ver, em reposição, dois filmes admiráveis do mestre japonês Yasujiro Ozu (1903-1963). São, aliás, duas obras que podem condensar, de forma simbólica, a fascinante herança histórica de Ozu: Viagem a Tóquio (1953) conduz-nos à mais radical depuração do seu sistema narrativo e formal, afinal indissociável do empenho em encenar as tensões internas do espaço familiar (ficou em terceiro lugar na lista resultante da votação internacional dos “melhores filmes de sempre”, promovida, em 2012, pela revista britânica Sight & Sound); O Gosto do Saké (1962), derradeiro título da sua filmografia, é um belíssimo testemunho sobre o envelhecimento, inseparável da acutilância com que Ozu observou as transformações sociais e geracionais do Japão do pós-guerra.
No contexto português, o lançamento destes filmes (em magníficas cópias digitais, restauradas) é tanto mais importante quanto parece confirmar uma tendência recente do mercado. De facto, algo está a mudar, depois de muitos anos em que assistimos ao triunfo do marketing dos “blockbusters” (“bons” ou “maus”, não é isso que está em causa), com a consequente marginalização de todos os outros géneros. Por um lado, parece óbvio que os distribuidores, grandes e pequenos, estão cada vez mais empenhados em criar condições para produtos que não sejam obrigatoriamente gerados por grandes máquinas de marketing; por outro lado, há sinais muito positivos no sentido da revalorização da memória dos clássicos – afinal de contas, há pelo menos uma ou duas gerações de espectadores que nunca puderam aceder a esses clássicos numa sala escura.
Neste capítulo, foi decisivo o impacto da reposição de Vertigo (1958), de Alfred Hitchcock (precisamente o nº 1 na votação da Sight & Sound atrás citada). Depois, pudemos ver ou rever em sala obras tão fascinantes como Lawrence da Arábia (1962), de David Lean, e Taxi Driver (1976), de Martin Scorsese. Dito de outro modo: nos últimos meses, se é verdade que a vitalidade da distribuição/exibição se mede também pela capacidade de manter uma relação dinâmica com a diversidade do passado cinéfilo, entre nós, ainda que em sectores específicos do mercado e numa escala necessariamente reduzida, essa relação foi reafirmada e revalorizada.
O exemplo de Ozu adquire um valor suplementar se nos lembrarmos que, hoje em dia, as ficções dominantes sobre as relações familiares são as telenovelas, com o seu rol de formatações dramáticas e narrativas, visuais e sonoras. A herança do cinema de Ozu permanece como bandeira de uma vontade de olhar à sua volta que talvez pudéssemos classificar a partir de um obstinado desejo de realismo... Talvez. Porque Ozu é também um delicado retratista da transcendência do ser humano.