domingo, setembro 15, 2013

Eleições, televisões e política

CARAVAGGIO
Medusa
1595
Discute-se o tempo de ocupação televisiva pela campanha eleitoral... Nunca se pensa a televisão como sistema específico de comunicação: onde está um-político-um (das direitas, das esquerdas ou de sítio nenhum) que tenha uma-ideia-uma sobre o papel social da televisão? — esta crónica de televisão foi publicada no Diário de Notícias (13 Setembro), com o título 'Terra de milagres'.

A agitação em torno da cobertura televisiva das eleições autárquicas possui um valor inevitavelmente sintomático. Desde logo, porque expõe o absurdo legal gerado no pós-25 de Abril e enraizado numa utopia pueril: a de que “todas” as televisões devem manter-se equidistantes de “todas” as candidaturas. Mas também porque o ponto a que se chegou – com os vários canais a denunciarem a irrisão dessa democracia “equitativa” – reflecte a escassez geral de pensamento social sobre a televisão.
Por detrás de tudo isto está, como sempre, a noção simplista segundo a qual a televisão não passa de uma entidade liofilizada que nada tem a ver com a dinâmica da sociedade e seus valores. Segundo tal noção, nem se coloca a hipótese de questionar os muitos cruzamentos contemporâneos entre mensagens televisivas e vivência política, cidadania conceptual e cidadania mediática. Bastaria que “todos” os partidos tivessem o mesmo “tempo” e teríamos o milagre redentor. A saber: a televisão como “espelho” imaculado do país que somos.
Ora, há pelo menos um século que, graças ao cinema (e também à pintura ou ao romance), sabemos que as imagens não espelham coisa nenhuma: são entidades que, em vez de reproduzirem o real, o reconfiguram, reorganizam e, num certo sentido, reinventam. Em Portugal, quase todos os decisores, de todas as cores políticas, estão convencidos (ou querem convencer-se) de que a televisão é um gadget que funciona como uma torradeira: desde que não queime o pão, não importa a qualidade da manteiga.
Reconheço que a metáfora não é muito feliz. Em todo o caso, numa democracia em que quase ninguém discute a formatação de mentes e sensibilidades todos os dias consumada por programas de “entretenimento” que ofendem a dignidade humana, há qualquer coisa de caricato nestes jogos florais em que se proclama que regressaremos à ditadura se o “meu” partido tiver menos 17 segundos que o “teu”... Podemos mesmo supor que a maior parte dos políticos nunca se apercebeu que a televisão se organiza como uma linguagem. Tal como o inconsciente, convém lembrar.