terça-feira, setembro 10, 2013

Como falar das memórias de Auschwitz (parte 7)

Fotos: N.G.
Completamos hoje a publicação de um texto sobre o Museu de Auschwitz-Bierkenau, que visitei recentemente e que foi originalmente publicado no suplemento Q. do DN sob o título ‘Como dar vida às memórias num antigo campo de morte’.
Uma “máquina de morte”, é como Pery Broad, funcionário da secção política do campo, descreve Auscwitz-Birkenau no seu relato (publicado no mesmo livro), quando se refere às alterações postas em prática em 1943. “A construção de quatro novos crematórios foi acelerada” e dois deles “tinham câmaras de gás subterrâneas e em cada um cerca de quatro mil pessoas podiam ser mortas ao mesmo tempo”, diz, referindo-se aos crematórios 2 e 3 situados ao fundo da alameda em frente à entrada de Birkenau na qual seria construída uma linha de caminho de ferro em 1944. Os crematórios 4 e 5 “tinham câmaras de gás divididas em três secções construídas nos pisos térreos”. Em “cada uma destas fábricas de morte havia uma sala imensa onde os ‘evacuados’ tinham de se despir” (23). Segundo o seu relato, a equipa de construção do campo estava tão orgulhosa dos seus feitos que tinha mesmo fotografias dos crematórios no edifício central “para que todos pudessem ver”.

Auschwitz atingiu a sua capacidade máxima de extermínio na primavera de 1944, com “grandes comboios vindos da Hungria a chegar incessantemente”. É por esta altura que é construído o ramal de caminho de ferro que passou a permitir aos comboios entrar diretamente em Birkenau. Eram ao todo três linhas, o que “permitia descarregar um comboio ao mesmo tempo que outro chegava”. Broad relata que cerca de dez mil pessoas chegavam ali todos os dias, que a percentagem dos que estavam condenados à “detenção especial” [o termo sonderbehanlung então usado, em lugar da ação especial] era “especialmente alto nestes transportes” e que “muitos enlouqueciam com sede e depressão mental durante a viagem”. Pery Broad diz ainda que a reputação de Auschwitz era já conhecida além do campo por essa altura. Pelo que “não se podiam contar mais histórias às pessoas que, apertadas em vagões de gado, reparavam na placa com o nome Auschwitz na estação de comboio pela qual tinham passado” (24). As semanas em que decorreu “a ação húngara” corresponderam, nas palavras deste relato, ao “clímax mais louco”, mas representaram também um “ponto de viragem na história do campo de extermínio”. Broad sabia que os alemães estavam a recuar em territórios ocupados e diz que esse “não era já um tempo em que prisioneiros olhassem de forma desencorajada o seu futuro”, uma vez que sabiam que o dia da sua libertação já não estava assim tão distante, “e essa convicção” dava-lhes nova “força”(25).

Ao mesmo tempo este funcionário do campo diz que os SS começavam a ter “ligeiras” dúvidas “quando acabavam de comer os seus figos gregos ou salsichas húngaras”. Começaram “até a ser mais simpáticos com os prisioneiros, “mas não podiam desfazer o que tinha sido feito”.

Os documentos sobre “tratamentos especiais” foram retirados dos dossiers. O mesmo, revela Percy, começou a acontecer em escritórios centrais em Berlim, em relatórios que mencionavam castigos por chicoteamento.

Auscwitz-Birkenau tinha entre os detidos cerca de 16 mil prisioneiros de etnia cigana que residiam numa zona confinada do perímetro do campo. A ordem para o seu extermínio (26) foi apontada para julho de 1944. “Mas alguns dos oficiais das SS estavam fartos da ação com os ciganos. Muitos encontraram conhecidos das suas cidades e não conseguiam compreender porque é que soldados de confiança tinham de ser detidos, não por terem cometido crimes, mas pela sua raça”, recorda.

Este “desconforto” a que Pery Broad se refere não desapareceu com a libertação do campo em janeiro de 1947. E ainda hoje aqueles que nele fazem o dia a dia sentem a carga das pesadas memórias de horror que aquelas paredes, arames e ruas fazem ressoar. O diretor Andrezej Kacorzyk mora, com a família, a cerca de 10 quilómetros do campo. “Vivo focado no trabalho”, confessa. Nos seminários, nos participantes... “Mas depois de um mês a ver o arame farpado, pessoas a chorar, isto desperta emoções”, reconhece.

A chegada e partida da camionetas com visitantes (na sua maioria vindos de Cracóvia) é constante. Há um pequeno café. E as livrarias vendem sobretudo publicações lançadas pelo próprio museu (algumas delas disponíveis até em português). Se me é permitido relatar um detalhe da minha experiência, posso dizer que entre o grupo com que ia, de carro, se falara muito a caminho de Auschwitz. Mas o silêncio foi total na viagem de regresso.

23 in 'KL Auschwitz Seen By The SS', pág 104, pág. 136
24 ibidem, pág 137
25 ibidem, pág 138
26 ibidem, pág 140