segunda-feira, setembro 09, 2013

Como falar das memórias de Auschwitz (6)

Continuamos a publicação de um texto sobre o Museu de Auschwitz-Bierkenau, que visitei recentemente e que foi originalmente publicado no suplemento Q. do DN sob o título ‘Como dar vida às memórias num antigo campo de morte’.
O ponto de vista dos alemães em Auschwitz não é só um dos novos focos da primeira parte da nova exposição permanente a inaugurar daqui a cinco anos. As memórias de alguns oficiais, contadas na primeira pessoa, fazem as páginas de Auschwitz Seen By The SS um entre os muitos títulos já publicados pelo próprio museu.

Johann Paul Kremer (18), um dos réus do julgamento da guarnição de Auschwitz (que decorreu em Cracóvia em 1947), revela naquelas páginas as memórias dos anos em que foi destacado para o campo. Médico e docente universitário, recebeu a 29 de agosto de 1942 uma ordem para substituir um cirurgião em Auschwitz, que havia adoecido. A 30 de agosto partiu de Praga pouco depois das oito da manhã e chegou ao campo ao final da tarde, relatando no seu diário uma situação de quarentena em Auschwitz, com inúmeros casos de tifo, malária e desinteria. Recebeu uma “ordem secreta” do médico da guarnição do campo e instalou-se no quarto 26 das instalações das Waffen SS. Estava calor, relata. No dia 31 foi vacinado contra o tifo e tirou uma foto para o cartão de identidade do campo. Bebia água engarrafada (que lhe era servida gratuitamente) e, como descreve, jantou bem: “fígados de pato com tomate recheado e salada” (19). Dois dias depois de chegar ao campo encomendou a Berlim um boné de oficial das SS, um cinturão para espada e braçadeiras. E nessa tarde assistiu à desinfestação de um bloco contra piolhos.

A 2 de setembro, quatro dias depois de chegar a Auschwitz, assistiu a uma primeira “ação especial”. 957 judeus provenientes do campo de Drancy, em França, tinham chegado nesse dia e deles apenas 12 homens e 27 mulheres deram entrada no campo, os restantes tendo sido gaseados. Os dados sobre transportes que acompanham, em notas de rodapé, o diário de Kremer, são retirados do Kallendarium der Ereignisse im Konzentrationeslager Auschwitz-Birkenau coligido por Danuta Czech (20). Os “assassínios em massa”, como descreveria mais tarde perante o tribunal, decorriam, em pequenas casas situadas perto de Birkenau (vermelha e branca), no meio de um bosque, a que os SS chamavam bunkers. “Todos os médicos do campo em serviço faziam turnos para participar nos gaseamentos, que eram designados como sonderaktion” [daí a expressão “ação especial”]. O papel de Kremer nos gaseamentos “consistia em estar disponível junto do bunker”, com máscaras de oxigénio nas mãos, para “reanimar os homens das SS encarregados de fazer os gaseamentos, no caso de algum deles sucumbir aos fumos venenosos” (21).

Os relatos no diário de Kremer sucedem-se nos dias seguintes. A 5 de setembro assiste a mais duas “ações especiais”, recebendo por isso ração especial de um quarto de litro de vodca, cinco cigarros, 100 gramas de salsicha e pão. Nessa manhã no campo de mulheres foram gaseadas pessoas a que chamavam moslems, ou seja, seres humanos num estado de debilidade física tal que não pareciam mais senão um esqueleto vivo. “O horror dos horrores”, descreve no diário, referindo o momento da morte de cerca de 800 mulheres. Em julho de 1947, num interrogatório formal, Kremer descreveria detalhadamente o sucedido:

“A ação do gaseamento de mulheres do campo feminino foi particularmente desagradável. (...) Lembro-me de participar no gaseamento destas mulheres à luz do dia. Não sou capaz de precisar quão numeroso seria o grupo. Quando cheguei ao bunker elas estavam sentadas, vestidas, no chão. Como as roupas que tinham eram roupas usadas do campo, não foram levadas para as barracas vestiário e despiram-se ao relento. Pude deduzir, pelo comportamento destas mulheres, que elas sabiam o que as esperava. Imploraram aos homens das SS que as deixassem viver, choraram, mas todas elas foram levadas para a câmara de gás e depois gaseadas. Sendo um anatomista tinha visto muitos horrores e corpos, mas o que vi não pode ser comparado com nada que tenha visto antes.”

No dia seguinte ao gaseamento destas 800 mulheres magras como esqueletos, o diário expressa um contraste ao observar o que chegava à mesa dos oficiais do campo num “excelente jantar de domingo” com “sopa de tomate, meio frango com batatas e couve roxa” e, para sobremesa, “magnífico gelado de baunilha”.

Pelo diário e testemunho de Kremer que o livro recorda, o médico das SS refere ainda a forma como recolhia entre os prisioneiros “material do fígado humano, baço e pâncreas” e também “piolhos das pessoas infetadas com tifo” para as suas investigações, que manteve em paralelo às rotinas e turnos do campo (22). Kremer estava interessado em “compreender as alterações no corpo humano como resultado da fome”. Em Auschwitz foi-lhe autorizada a recolha de “material fresco” dos prisioneiros que eram mortos com injeções de fenol. “Para escolher os especímenes que servissem” visitava o Bloco 28, onde os prisioneiros doentes iam para serem examinados. Os médicos que os observavam decidiam depois “tendo em consideração as hipóteses de recuperação” dos doentes “se deveriam ser tratados no hospital” ou “serem liquidados”. Os que eram colocados neste último grupo “eram levados pelos ordenanças das SS”. Os médicos das SS “designavam para liquidação os prisioneiros cujo diagnóstico fosse exaustão corporal generalizada”. Kremer relata que costumava observar estes pacientes e, se algum deles chamasse o seu interesse, pedia ao ordenança para que o avisasse quando fosse a sua execução “com uma injeção”. Na hora determinada para a execução os prisioneiros eram levados para o mesmo bloco, mas para salas no lado oposto do corredor face àquela onde tinham sido examinados. Eram deitados nas mesas de dissecação ainda vivos, relata o médico, que então os entrevistava, perguntando-lhes assuntos que “interessavam” à sua investigação, como por exemplo “que peso tinham antes de terem sido detidos, quanto peso tinham perdido desde então, se tomavam medicamentos, etc...”. E depois de colhida a informação “um ordenança aproximava-se do paciente e matava-o com uma injeção de fenol na região do coração”. Tanto quanto confessou saber, Kremer acredita que apenas foi usado fenol neste tipo de execuções. E ao tribunal disse que ele mesmo nunca ministrou nenhuma injeção letal.

Ao todo Kremer assistiu a 13 “ações especiais” e a uma série de execuções e castigos até ao dia em que foi transferido de Auschwitz, a 31 de outubro de 1942, muito antes do período da história do campo que corresponde ao maior volume de gaseamentos, entre 1943 e 44.

18 Paul Johann Kremer - Doutor em Medicina, docente na universidade de Munique, inscreveu-se no NASDAP (partido nazi) em 1932 e nas SS em 35. Esteve em Auschwitz entre 30 de agosto de 1940 e 17 de novembro de 42. Foi condenado à morte no julgamento dos elementos da guarnição das SS em Auschwitz-Birkenau em 22 de dezembro de 1947, mas pela idade acabou libertado dez anos depois, em janeiro de 58. Teve novo processo ao regressar à Alemanha. Foi-lhe retirado o doutoramento em Medicina
19 in 'KL Auschwitz Seen By The SS', pág 104, pág. 160
20 ibidem, pág 162
21 ibidem
22 ibidem, pág 167