terça-feira, setembro 03, 2013

Como falar das memórias de Auschwitz (2)

Fotos: N.G.
Continuamos a publicação de um texto sobre o Museu de Auschwitz-Bierkenau, que visitei recentemente e que foi originalmente publicado no suplemento Q. do DN sob o título ‘Como dar vida às memórias num antigo campo de morte’.

Ao contrário de outros campos montados para por em prática a chamada “solução final”, Auschwitz era um complexo que transcendia as meras funções de extermínio de outros campos como Treblinka, Sobibor ou Belzec (1). O campo original, conhecido como Auschwitz 1, foi criado em 1940 nas imediações da pequena cidade de Oswiecim, numa zona pantanosa entre os rios Vístula e Sola (um afluente do primeiro). Começou por surgir como campo de concentração para presos políticos polacos, edificando-se o projeto inicial com base em barracas de um antigo campo militar que ali existira. Auschwitz 1 inclui 28 blocos, alguns deles com funções específicas de hospital ou mesmo de prisão dentro da prisão (nas caves do Bloco 11, num dos extremos do campo, havia celas para castigos e ali foram realizadas as primeiras experiências com o gás Zyklon B (2) que mais tarde seria usado nas câmaras de gás). Havia ainda uma cozinha para os prisioneiros, uma zona de castigos públicos e uma área, logo à entrada, onde frequentemente havia uma pequena orquestra recrutada entre os detidos, conta-nos o guia. Um muro de tijolos impedia que alguém de fora pudesse olhar para dentro do campo. O perímetro era ainda limitado por duas filas de arame farpado eletrificado, separadas por um espaço com gravilha que era conhecido como a zona neutra. Quem pisasse essa zona neutra seria imediatamente abatido pelos guardas nas torres de vigia. Ao todo eram entre 20 e 25 mil os detidos neste campo, todos eles ali chegados pelo portão sobre o qual se pode ler a inscrição de evidente mau gosto Arbeit macht frei (que podemos ler como “O trabalho liberta”) (3), placa que ainda há poucos anos fez notícia depois de roubada (e entretanto recuperada).

O primeiro transporte de prisioneiros chegou ali a 14 de junho de 1940. Eram 728 polacos, incluindo um número reduzido de judeus. Entre este dia e o da sua libertação, a burocracia do campo registou a entrada de cerca de 405 mil prisioneiros, 270 mil dos quais eram homens.

A partir de 19 de junho as populações da área começaram a ser levadas para outros locais. Toda a população judaica da região foi deslocada para os guetos nas cidades mais próximas (só em Oswiecim eram sete mil pessoas). Já tendo em conta eventuais planos de alargamento do campo e a necessidade de manter afastada a população local são então destruídas oito aldeias e demolidos mais de cem edifícios (4).

A 6 de julho é assinalada a primeira fuga com sucesso do campo. Tadeusz Wiejowski será assim um entre os cerca de 150 que conseguirão concretizar fugas entre o mais de um milhão de deportados que chegarão ali e a Birkenau (que surgira mais tarde). A maior parte das tentativas terminaram contudo com finais diferentes, com os fugitivos baleados na perseguição ou mortos depois de novamente capturados. As fugas bem-sucedidas eram contudo má notícia para quem ficava no campo. Veja-se o caso de uma represália (a 23 de abril de 1941) na qual o comandante do campo Rudolf Höss sentenciou à morte pela fome dez prisioneiros na sequência de uma outra fuga.

A 1 de março de 1941, pouco mais de um ano depois de ele mesmo ter escolhido o local, Heinrich Himmler (o Reichsführer, líder máximo das SS) faz uma inspeção a Auschwitz e dá as primeiras ordens para a criação de programas de trabalho dos detidos em fábricas alemãs nas imediações. Surge aqui a base de um vasto sistema de campos-satélite de trabalho que fazem também parte da história de Auschwitz.

1941 é também o ano que marca o início da utilização do gás Zyklon B em execuções em massa. A primeira ocorre a 3 de setembro, com 600 prisioneiros soviéticos e 250 polacos. Durante o outono desse ano a câmara de gás adjacente ao campo (conhecida como crematório 1 e a única intacta e visitável nos dias de hoje) começa a funcionar regularmente.

Birkenau surgiu entre 1941 e 42 a cerca de seis quilómetros de Auschwitz 1 e é de uma dimensão absolutamente colossal, encerrando entre o arame farpado cerca de 30 mil mulheres e entre 50 e 60 mil homens (5). Os barracões onde viviam eram, na sua maioria, “estábulos de madeira sem janelas ou casas de tijolos primitivas”, como recorda quem ali viveu. O campo estava dividido em sectores. O sector 1, para as mulheres, ficava do lado esquerdo do portão principal (onde em 1944 entraria a linha de caminho de ferro). O sector 2 era o masculino, dividido em seis zonas. Havia um terceiro sector em construção quando o campo foi subitamente evacuado a 17 de janeiro de 1945.

As condições de vida no campo de Birkenau eram consideravelmente piores que em Auschwitz, “onde eram já suficientemente más”, descreve o antigo funcionário do campo Pery Broad (6) em Auschwitz Seen By The SS, um livro que guarda memórias de oficiais da guarnição das SS no campo. Os pés “afundavam-se num chão peganhento a cada passo que se dava e mal havia água para as pessoas se lavarem”. Nos barracões as pessoas dormiam apinhadas, seis por cada cama, em estruturas de madeira em três andares e muitas delas sem colchões de palha (7). A taxa de mortalidade por doença era, por isso, enorme.

Segundo recorda o livro Auschwitz Bierkenau – The Past and The Present, data de 29 de julho de 1942 a primeira chegada de informação aos aliados, vinda de uma fonte alemã, daquilo que estava a acontecer em Auschwitz. O industrial Edward Schulte informa que Himmler esteve no campo a assistir à execução de 499 judeus com Zyklon B no Bloco 2. Esta foi, sublinha o livro, a primeira informação, veiculada por um alemão, das mortes em câmaras de gás no campo. Mas desde 1940 havia já entre os aliados conhecimento do que ali acontecia, em informações que, relata este livro, chegavam a Londres através do Governo polaco exilado, que tinha ligações próximas com a resistência.

O extermínio em massa chega com o início de 1942. Em março chega a Birkenau um primeiro transporte de 69 mil judeus franceses e 27 mil da Eslováquia. As primeiras duas mil mulheres chegam a 26 de março. E entre março e junho desse ano duas câmaras de gás na forma de casas de campo funcionam nas imediações de Birkenau. Em maio começam as deportações de 300 mil judeus oriundos da Polónia, e de 23 mil da Alemanha e Áustria. A primeira “seleção” (na qual se decida na hora quem ficava detido no campo e quem era enviado, logo a seguir, para as câmaras de gás) decorreu a 4 de maio de 1942. Chegarão depois transportes de 60 mil judeus holandeses (a partir de julho de 42), 25 mil belgas e 10 mil jugoslavos (agosto de 42), 46 mil do protetorado da Boémia e Morávia (outubro de 42), 7 mil da Noruega (dezembro de 42), 55 mil gregos (março de 43), 7500 italianos (outubro de 43) e 438 mil húngaros (maio de 44) (8). Em 1943 é estabelecido em Birkenau uma zona para os prisioneiros ciganos. Entre março e junho desse ano os quatro crematórios principais (cada qual associado a câmaras de gás) começam a funcionar dentro do perímetro de Birkenau.

As execuções em massa de judeus chegam ao fim em novembro de 1944. A última execução de prisioneiros data de 6 de janeiro de 1945, num enforcamento público de quatro mulheres envolvidas na preparação do motim do sonderkommando (9) poucas semanas antes. Nesse mesmo dia foram executados 70 polacos sentenciados por tribunais sumários.

A 17 de janeiro de 1945, já com a certeza da aproximação dos soviéticos, são iniciadas as marchas da morte, com a evacuação de cerca de 60 mil prisioneiros do campo. Entre os dias 21 e 26 os alemães destroem as câmaras de gás de Birkenau. E a 27 de janeiro unidades do exército soviético libertam o campo.

Ao todo estimam-se em 1,3 milhões de pessoas o número de deportados para Auschwitz, sendo de aproximadamente 1,1 milhões o números de mortes no campo. Entre as vítimas um milhão foram judeus, aos quais se somam entre 70 e 75 mil polacos, 21 mil ciganos e 14 mil prisioneiros de guerra soviéticos. 15 mil pessoas de outros grupos terão conhecido idêntico fim (10).

Apesar destes números gigantescos, apenas cerca de 405 mil pessoas foram registadas pelos serviços do campo, admitidas assim como prisioneiros. Entre os números registados contam-se 200 judeus, 160 mil presos políticos, 21 mil presos “associais” (entre os quais os de etnia cigana), 12 mil prisioneiros de guerra soviéticos, 11 mil prisioneiros “correcionais” (detidos por faltas de disciplina no trabalho). Sem especificar números precisos, um texto oficial recente do Museu de Auschwitz Birkenau assinala ainda que em Auschwitz havia ali pessoas que haviam sido detidas pela Gestapo na região, criminosos (sobretudo de origem alemã, muitas vezes usados como auxiliares disciplinares das SS), testemunhas de jeová e homossexuais.

1 - Treblinka, Sobibor e Bergen Belsen – Campos de extermínio nazi, praticamente não tinham barracões para prisioneiros, sendo essencialmente dedicados ao gaseamento em massa dos que para ali eram enviados. Treblinka, a Norte de Varsóvia, esteve ativo entre julho de 1942 e outubro de 1943, crendo-se que tenham ali morrido entre 800 mil e mais de um milhão de pessoas, sobretudo judeus e de etnia cigana. Sobibor, na fronteira leste polaca, operou entre maio de 1942 e outubro de 1943. As estimativas apontam para 200 a 250 mil mortos. Belzec, também na fronteira leste polaca, mas mais a sul, foi o primeiro campo construído para funções de extermínio. Operou entre março e dezembro de 1942, calculando-se que tenham ali morrido de 430 a 500 mil pessoas. Todos estes campos foram destruídos, havendo monumentos pela memória das vítimas nos locais onde existiram.
2 Zyklon B – Era na verdade um pesticida com base em ácido prússico, um estabilizador e bromoacetato de etilo, usado como odor de alerta para a sua presença. O gás libertado por este composto foi usado nas câmaras de gás de Auschwitz e também dos campos deMajdanek e Sachsenhausen, mas não teve aplicação em outros campos de extermínio.

3 ‘Arbeit macht frei’ - Expressão alemã que podemos traduzir como “o trabalho liberta”, esteve inscrita na porta de campos de concentração como o de Auschwitz 1, Sachsenhausen, Dachau ou Theresienstadt. A placa de Auschwitz foi roubada em 2009 mas recuperada pela polícia. A placa original está hoje no museu de Auschwitz, e sobre o portão encontramos agora uma réplica.

4 in 'Auschwitz Bierkenau – The Past and The Present', pág 30

5 in 'KL Auschwitz Seen By The SS', pág 104

6 Pery Broad – Inscreveu-se na juventude hitleriana em 1931 e como voluntário para as SS em 41. Em abril de 42 foi colocado em como guarda em Auschwitz e, depois, na secção política do campo. Detido pelos ingleses em 1945, foi libertado em 47. Nesse ano foi julgado na sequência das investigações em Auschwitz, e sentenciado a quatro anos anos.

7 in 'KL Auschwitz Seen By The SS', pág 105

8 Números oficiais emitidos pelo museu, apresentados em 'Auschwitz Bierkenau – The Past and The Present', págs 30 e 31

9 Sonderkommando – unidades de presos que tratavam diretamente das operações de extremínio.

10 Números oficiais emitidos pelo museu, apresentados em 'Auschwitz Bierkenau – The Past and The Present', pág 12