domingo, julho 14, 2013

Merkel, Sócrates, a televisão e o resto

DAVID HOCKNEY
A Bigger Splash
1967
Como pensar a televisão de Verão? Ou melhor: porque é que a televisão de Verão (e não só...) promove a noção de que pensar é coisa inútil? — esta crónica de televisão foi publicada no Diário de Notícias (12 Julho), com o título 'Pensamentos de Verão'.

1. O Verão traz as festas. As festas trazem a música pimba. A música pimba traz a felicidade. E a felicidade apresenta-se enunciada, promovida e gritada por uma admirável galeria de esforçados apresentadores. Fica a dúvida ontológica: porque é que, entre escassas sombras protectoras e mini-ajuntamentos a fingir multidões, o sentimento geral é de angustiada tristeza?

2. Como cada vez há mais “famosos” de que nunca ouvimos falar, deduzimos que a “fama” passou a ser uma pirueta discursiva. O que define tais figurantes é a exaltação do “amor livre” ou, com o passar dos anos, a divinização da “família”: como qualquer cidadão comum, são casados, divorciados, viúvos ou apenas sem mapa, mas todos proclamam a felicidade familiar como a salvação da Pátria. Será que acreditam no que dizem?

3. Já não é uma mera tendência de marketing. Passou a existir como uma verdadeira filosofia de consumo: as campanhas publicitárias dos hiper-mercados sustentam elaboradíssimos discursos sobre a coesão familiar e a sua abençoada concretização através da mais recente promoção de perna de porco ou frango fatiado. Onde está o complexo de Édipo?

4. As televisões orgulham-se das suas audiências “populares”, mobilizadas nas camadas com menos posses. Estranhamente, no meio de muitos programas que garantem tais audiências, proliferam anúncios a carros de luxo fabricados pela Sra. Merkel. Crueldade televisiva ou ingenuidade dos publicitários?

5. José Sócrates falou em “narrativas” políticas e deu origem a uma moda curiosa: passou a ser chique gozar com os princípios básicos da semiologia. Na verdade, limitou-se a recordar aquilo que, há mais de dois mil anos, o seu homónimo ateniense nos ensinou: somos também o modo como narramos o facto de existirmos. Entretanto, em muitos serviços informativos, a narrativa passou a ser em três tempos: a crise nacional + um drama internacional + um crime de faca e alguidar (não necessariamente por esta ordem). Quem quer pensar o jornalismo que não temos?