segunda-feira, junho 10, 2013

Marilyn em "Smash"

Bizarra contradição dos nossos dias: alguma da mais rica memória cinéfila está... na televisão — este texto foi publicado no Diário de Notícias (9 Junho), com o título 'A cinefilia e as suas contradições'.

Está a terminar num dos canais do cabo (TV Séries) a passagem da segunda e última temporada de Smash, um dos mais admiráveis produtos televisivos lançado em anos recentes pela indústria do audiovisual “made in USA”. Criada por Theresa Rebeck, para a NBC, a série envolveu alguns nomes emblemáticos, incluindo Steven Spielberg (na qualidade de produtor executivo). A sua excelência é tanto mais fascinante e paradoxal quanto Smash consegue aquilo que, há décadas, muitas produções cinematográficas têm tentado (e, quase sempre, falhado): criar um produto específico dos nossos dias, recuperando e revitalizando algumas referências básicas da estética do género musical do cinema clássico de Hollywood.
Aliás, a inteligência de Smash é tanto mais subtil quanto o seu motor dramático é a realização de um espectáculo musical, na Broadway, inspirado na vida de Marilyn Monroe. Mais do que isso: as atribulações para a escolha da intérprete principal polarizam a acção em torno de duas actrizes – interpretadas pelas magníficas Katharine McPhee e Megan Hilty [foto] –, por assim dizer duplicando a própria ambivalência de Marilyn, dividida entre os faustos de Hollywood e a ânsia de permanecer uma mulher “como as outras”.
Se evoco aqui a série não é apenas por gosto em voltar a chamar a atenção para um objecto de espectáculo que, como muitos outros, me pareceu passar de forma mais ou menos automática, sem grande investimento promocional e também com escassos ecos na comunicação social. Acontece que a série pode simbolizar uma contradição amarga que, creio, os tempos que vivemos continuarão a agravar. Assim, na sua muito genuína cinefilia (escusado será lembrar que Marilyn não é propriamente um nome banal na arquitectura clássica da mitologia cinematográfica), Smash exemplifica uma atitude de respeito, admiração e trabalho criativo com a memória plural do cinema que quase desapareceu daquele que seria, por princípio, o seu lugar natural. A saber: o mercado cinematográfico.
A nova temporada dos “blockbusters” que está a começar é reveladora da ausência de valores cinéfilos na maior parte das formas actuais de consumo do cinema. E o que está em jogo não é apenas a questão de haver todo um público formado fora de qualquer relação dinâmica (e comercial!) com o património do cinema. É, acima de tudo, o facto de essa relação ter sido “substituída” pelo consumo de um cinema cuja imagem de marca se reduz, tristemente, aos milhões dos seus investimentos e à proliferação dos célebres “efeitos especiais”.
Aliás, a situação é ainda mais preocupante porque, tal como vai acontecer este Verão, a oferta dos “blockbusters” se confunde (até mesmo na animação infantil) com a acumulação de sequelas e mais sequelas. Neste contexto, a celebração cinéfila de Marilyn está... na televisão, cruzando a mitologia com a crueldade mediática.