Grande acontecimento cinematográfico: Lore, de Cate Shortland, é um dos filmes mais admiráveis feitos em anos recentes sobre as memórias da Segunda Guerra Mundial — este texto foi publicado no Diário de Notícias (22 Junho), com o título 'Realismo à flor da pele'.
Evitemos qualquer ecumenismo equívoco: as memórias do Holocausto nunca serão serenas ou apaziguadoras. O horror da Solução Final, arquitectada pelos nazis para dizimar o povo judeu, não pode ser contado como se fosse um soundbyte televisivo. Daí que a importância de Lore, de Cate Shortland, transcenda a simples ideia de uma “variação” sobre o modelo tradicional do filme de guerra. Primeiro porque ela aposta num elaborado registo psicológico, afinal de contornos exemplarmente clássicos. Depois porque Shortland corre o risco estético e moral de “transferir” o seu filme para o lado alemão. Mais do que isso: de o fazer retratando esse momento fatal em que, face à derrocada dos exércitos de Hitler, todos os alemães são levados a questionar o que sabiam ou não queriam saber, aquilo em que acreditaram ou aquilo que eram induzidos a ignorar.
Na personagem da jovem Lore (admirável Saskia Rosendahl), subitamente confrontada com o drama da sobrevivência dos seus quatro irmãos mais novos, confluem duas componentes de invulgar intensidade e simbolismo: no plano temático, a tragédia interior de uma Alemanha desagregada por uma terrível miragem de grandeza e poder; em termos narrativos, repondo a hipótese de um realismo carnal, à flor da pele, que nunca escamoteia a perturbante densidade da história colectiva.
Se há uma referência tutelar que podemos evocar será, por certo, a de dois filmes de Ingmar Bergman: O Ovo da Serpente (1977), precisamente sobre o nazismo, e A Vergonha (1968), observando a decomposição dos laços humanos numa situação de guerra. E não se entenda o nome de Bergman como uma “caução”: Lore é um objecto de excepção que, para simplificar, fica desde já como um dos grandes acontecimentos do nosso ano cinematográfico.