domingo, junho 30, 2013

"A Lista de Schindler" em Blu-ray (2/2)

Oskar Schindler interpretado por Liam Neeson
A edição em Blu-ray de A Lista de Schindler marca o reencontro com um momento central na obra e na dinâmica criativa de Steven Spielberg — este texto foi publicado no suplemento "QI", do Diário de Notícias (15 Junho), com o título 'O Holocausto nas fronteiras do realismo'.

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O interesse de Spielberg pelo livro de Thomas Keneally levou-o a sugerir aos estúdios da Universal a aquisição dos respectivos direitos para cinema. Inicialmente, não era sua intenção dirigir a adaptação, envolvendo-se apenas como produtor; o certo é que o conhecimento das mais diversas “teorias” que, ainda hoje, tentam negar o Holocausto, levou-o a decidir-se pela realização. Como está documentado nos extras da edição do filme em Blu-ray, tal processo conduziu Spielberg à criação, em 1994, da Fundação para a História Visual do Holocausto [ USA Shoah Foundation ], entidade vocacionada para a recolha, preservação e difusão de testemunhos e materiais de arquivo susceptíveis de ajudar as novas gerações a conhecer a Solução Final com que os nazis quiseram aniquilar o povo judeu (estranhamente, o disco que inclui esses extras é, não um Blu-ray, mas um DVD normal).
Há em A Lista de Schindler um princípio de realismo cuja pertinência estética importa, mais do que nunca, enfatizar. E não apenas por causa da fotografia a preto e branco. Acontece que todo o trabalho do director de fotografia Janusz Kaminski (3) foi conduzido por vectores de natureza documental. Assim, ao contrário dos seus filmes anteriores, onde sempre recorrera a planificações (“storyboards”) muito elaboradas, desta vez Spielberg deixou para o próprio momento da rodagem as decisões sobre enquadramentos e durações dos planos. Na prática, isso criou uma disponibilidade diferente para reagir aos estímulos visuais e também para trabalhar com os actores as nuances emocionais de cada cena.
No limite, podemos dizer que A Lista de Schindler desafia um dos mais perenes tabus do imaginário histórico ocidental. A saber: que o Holocausto, instaurando um horror na fronteira do indizível, seria “infilmável”. Entenda-se: impossível de trabalhar nos registos da ficção cinematográfica.
Ora, mesmo sem escamotear a complexidade das questões formuladas em torno da tradução cinematográfica do Holocausto (até porque se fundamentam num princípio de resistência à banalização do horror), importa também acrescentar que a “démarche” de A Lista de Schindler não é estranha a um impulso realista que, em boa verdade, marcou os aspectos mais nobres da tradição do filme de guerra. Spielberg arrisca mesmo na aplicação de princípios muito clássicos de caracterização psicológica, bem expressos nas múltiplas facetas de personagens como Schindler (Liam Neeson) ou Amon Göth (Ralph Fiennes), o oficial nazi que comanda o campo de concentração.
Em termos especificamente cinematográficos, talvez se possa dizer que A Lista de Schindler encerra, no plano simbólico, a história clássica de um género, o filme de guerra, ou, em rigor, do filme sobre a Segunda Guerra Mundial. Não admira que, mais tarde, ao dirigir O Resgate do Soldado Ryan (1998), sobre o desembarque das tropas aliadas na Normandia, a “mise en scène” de Spielberg viesse a reflectir uma espectacular reconversão do género e, afinal, a lógica de um novo realismo.

(3) JANUSZ KAMINSKI (n. 1959) – Director de fotografia polaco, é responsável pelas imagens de todos os filmes de Steven Spielberg, desde A Lista de Schindler até Lincoln (2012), tendo ganho dois Oscars (com A Lista de Schindler e O Resgate do Soldado Ryan). Fotografou também, por exemplo, Jerry Maguire (1996) e O Escafandro e a Borboleta (2007).