O texto data de setembro de 1969. Em carateres escritos à máquina podemos ler: “Um ursinho de peluche gasto pelo tempo está a ser embalado nos braços de Napoleão, com quatro anos, que sonha ao mesmo tempo que chupa o dedo e ouve uma história de embalar contada pela sua jovem mãe, Leticia. A seu lado o seu irmão José, com cinco anos, já está a dormir”... Estas seriam as primeiras imagens de um filme sobre a figura de Napoleão Bonaparte. Um biopic de dimensões épicas. Mas o projeto, mesmo depois de uma longa etapa de pesquisa e de uma pré-produção que atingiu os cinco milhões de dólares (3,9 milhões de euros), acabou por nunca sair da gaveta. A notícia de que o produtor Dino de Laurentis estava também a preparar um filme sobre Napoleão com Rod Steiger no papel protagonista devera ter sido a razão principal para explicar o receio da MGM, acentuado depois do fracasso nas bilheteiras desse Waterloo (1).
Segundo explica o produtor Jan Harlan, nas memórias que publica no livro Stanley Kubrick's Napoleon': The Greatest Movie Never Made, Napoleão teria oferecido a Kubrick a possibilidade de fazer um grande épico sobre uma série de temas. Era um episódio importante da história europeia, tinha como protagonista uma “personalidade constrangedora, uma figura histórica ímpar”, traduzia “uma história que envolve glamour, revolução, romance, inveja, intriga e traição, batalhas em terra e no mar e, acima de tudo, poder” (2). A história de Napoleão, como defende Jan Harlan, permitiria ao realizador um olhar “sobre a fragilidade e a glória da humanidade através de um líder carismático” (3). A ideia de uma Europa comum e de uma moeda única, mas como Paris como a capital, faziam deste mundo um espaço igualmente visionário a explorar.
A pesquisa foi intensa e, tal como o filme que tinha em mente, revelou-se tarefa de dimensões épicas. Kubrick leu os livros que conseguiu encontrar em língua inglesa sobre Napoleão e o seu tempo, o que mais o marcou tendo sido uma biografia assinada em 1963 por Felix Markham, professor de Oxford com quem depois conviveu (4). Construiu a partir de então um impressionante ficheiro de factos cronologicamente ordenados, organizado por um conjunto de estudantes de história em Oxford que contratou expressamente para esta tarefa. E juntou também cerca de 17 mil imagens do período entre 1760 e 1830, que montou num outro sistema de arquivo. Kubrick queria compreender aquela época, mas sobretudo conhecer o homem e o seu pensamento. Estava “totalmente imerso na vida de Napoleão”, como chegou a afirmar numa entrevista em 1969 (5).
A aventura terá começado a ganhar contornos mais nítidos a partir de 1967 e a dada altura Kubrick chegou mesmo a ponderar os nomes de atores a chamar. Entre as suas anotações estavam nomes como os de Audrey Hepburn, Peter O’Toole, Alec Guiness, Peter Ustinov, Charlotte Rampling e Jean-Paul Belmondo. Em 1968 chegou até a oferecer o papel principal a Oskar Werner, mas o produtor executivo Jan Harlan revelou mais tarde que os nomes de Ian Holm e David Hemmings também estavam entre a sua lista de favoritos para o papel. Na década de 70, por alturas em que ponderou retomar o projeto, Jack Nicholson foi outro dos atores em que pensou para vestir a pele do seu Napoleão. Em 1968 a etapa de repérage identificara palácios e casas senhoriais (sobretudo em Itália) e o departamento de guarda roupa ensaiou primeiros modelos. Napoleão teria grande parte da rodagem feita em França, Reino Unido e Roménia, aqui contando com a contribuição da cavalaria romena para as cenas de batalha.
O argumento, na versão de 1969, reflete anotações que fez na sua cópia da biografia escrita por Markham. Explora a psicologia do imperador. A sua relação com os outros e em particular com as mulheres. Expressa um interesse sobre a forma como exercia o poder (e as relações de lealdade daqueles ao seu redor). E, como conhecíamos já de outros filmes seus, mostrava uma preocupação para com as questões da guerra e das instituições militares. Segundo o próprio Kubrick chegou a afirmar, Napoleão recorreria à voz off, teria mapas animados. O realizador explicou mesmo que lhe parecia ser importante poder mostrar a “essência das batalhas” ao espectador porque, defendia que “tinham um brilho estético que não requer termos uma mente militar para as apreciarmos” (6). Comparava mesmo estes mapas e estratégias com uma peça de música ou à pureza de uma fórmula matemática.
O filme percorreria cronologicamente momentos marcantes da vida de Napoleão. Este surgira como um jovem tenente em pleno 14 de julho de 1789, no dia em que a Bastilha era tomada por populares e eclodia a Revolução Francesa. Acompanharia a sua formação intelectual e militar, as promoções sucessivas e as primeiras campanhas que o elevariam a general. Ultrapassaria as fronteiras da França, levando os exércitos a Itália, a Malta e ao Egito. Regressaria a Paris para o 18 de Brumário de 1799 (o golpe de estado que o elevou ao poder) e, depois, para o encontrar como Primeiro Cônsul a partir de 1802. Seguir-se-iam novas campanhas militares, a coroa imperial (em 1804), as vitórias, o alargamento do Império e a pesada derrota na Campanha da Rússia em 1812. A abdicação em 1814. Os 100 dias em 1815. Até à derrota final e consequente exílio na Ilha de Santa Helena, perdida no Atlântico Sul, onde morreu em 1821.
1 Waterloo, de Sergei Bondarchuk é um filme de produção italo-soviética de 1970. Rod Steiger interpretava aqui o papel de Napoleão.
2 in Stanley Kubrick's 'Napoleon': The Greatest Movie Never Made (Taschen, 2009), pág 15
3 ibidem
4 Transcrições de conversas entre o realizador e o historiador estão publicadas neste volume publicado pela Taschen.
5 Entrevista concedida a John Glemis, publicada no livro 'Film Director as Superstar', de 1970.
6, in Stanley Kubrick's 'Napoleon': The Greatest Movie Never Made (Taschen, 2009), pág 44