A reposição de Lawrence da Arábia (1962), de David Lean, representa o reencontro com um dos modelos mais admiráveis das "superproduções" de há meio século — este texto foi publicado no Diário de Notícias (9 Maio), com o título 'Elogio do cinema e da perfeição'.
Ver ou rever Peter O’Toole a interpretar a personagem, complexa e fascinante, de T. E. Lawrence é deparar com um valor humano (também humanista) para o qual as gerações mais jovens têm sido metodicamente deseducadas. Que valor é esse? Pois bem, o actor, esse bicho de muitas e inusitadas transfigurações que, de facto, não depende da agitação mais ou feérica dos “efeitos especiais”.
Repare-se: não se trata de lançar qualquer suspeição generalizada sobre as virtudes emocionais dos espectadores mais jovens. Como não se pretende duvidar da importância que a evolução tecnológica sempre teve em momentos decisivos da história do cinema. Trata-se, isso sim, de sublinhar que o cinema de David Lean está muito longe de ser uma mera acumulação de cenários grandiosos e milhares de figurantes: Lawrence da Arábia é mesmo a depurada consagração de uma visão do mundo que nasce dos valores mais enigmáticos da dimensão humana, observando-os com a paciência metódica de um genuíno mestre.
Daí que a reposição de Lawrence da Arábia em nova e esplendorosa cópia digital (eis as maravilhas da tecnologia!) não possa deixar de envolver factores que, em muitos aspectos, a aproximam da singularidade de uma estreia. Assim, creio que não será arriscado dizer que a esmagadora maioria dos espectadores com menos de 30 anos (precisamente os que, garantem as estatísticas, mais frequentam as salas escuras) nunca viu a obra-prima de Lean num grande ecrã. E, também aqui, não se pretende demonizar as delícias próprias do DVD ou do Blu-ray... Acontece que, desta vez, faz sentido dizer que Lawrence da Arábia pode ser visto e revisto como foi desejado, pensado e fabricado. Sabendo nós que Lean foi um obsessivo perfeccionista, esta é também a melhor maneira de o homenagear.