Marion Cotillard, The Next Day (2013) |
A revelação do teledisco de The Next Day constituiu mais um pequeno grande acontecimento na trajectória pública do álbum homónimo de David Bowie — este texto foi publicado no Diário de Notícias (12 Maio), com o título 'Todas as máscaras de David Bowie'.
David Bowie continua a construir uma espantosa obra visual que, há várias décadas, permanece indissociável da sofisticada elaboração do seu percurso musical. A par de Madonna, ele tem sabido viver neste mundo saturado de imagens, não se limitando a encarar a sua iconografia como mero suporte de “promoção”, antes trabalhando-a como elemento vital de uma identidade artística, pessoal e intransmissível. Temos, agora, mais um admirável exemplo no teledisco de The Next Day (tema que dá o título ao seu 24º álbum de originais, lançado a 8 de Março), resultante de nova colaboração com Floria Sigismondi, realizadora italiana que, também do novo álbum, já assinara The Stars (Are Out Tonight).
O menos que se pode dizer de The Next Day é que a sua contagiante vibração nasce do reconhecimento da continuada energia da iconografia cristã. Podemos resumi-lo como um ritual protagonizado por três personagens indissociáveis dessa iconografia: um padre, interpretado por Gary Oldman, que chega a uma espécie de cabaret frequentado por várias figuras mais ou menos reconhecíveis (um bispo, uma “Joana D’Arc”, etc.); com ele vai a mulher que Marion Cotillard assume numa espantosa ambiguidade, por assim dizer a meio caminho entre a fúria pecaminosa e uma virginal claridade; enfim, há um profeta que canta The Next Day e que é, obviamente, o próprio Bowie.
Vale a pena lembrar que a canção existe, ela própria, como uma espécie de parábola moral sobre os disfarces de um tempo de perversos jogos de espelhos. Há mesmo um verso que refere os protagonistas de tais jogos, dizendo: “Eles conseguem trabalhar com o diabo ao mesmo tempo que se vestem como santos...” Dito de outro modo: o cenário assumidamente teatral de The Next Day é tão só um palco irónico de um mundo de muitas máscaras em que as aparências podem ter tanto poder quanto a realidade que ocultam ou secundarizam.
Madonna, Like a Prayer (1989) |
Um pouco à maneira do clássico Like a Prayer (Madonna, 1989, realizado por Mary Lambert), outro teledisco seduzido pela iconografia cristã, The Next Day aposta também na integração de um imaginário que, no limite, o obriga a reavaliar o desenho das fronteiras entre o carnal e o espiritual. Aliás, quando a personagem de Marion Cotillard começa a sangrar das chagas nas mãos, a imagem não pode deixar de evocar um efeito semelhante nas mãos de Madonna, em Like a Prayer.
Escusado será dizer que The Next Day será tudo o que se quiser, menos um objecto consensual. Nos EUA, Bill Donohue, da Liga Católica para os Direitos Civis e Religiosos, já deu a conhecer o seu protesto e o próprio YouTube retirou o teledisco durante algumas horas para, depois, o voltar a integrar [videos: The Next Day + Like a Prayer]. Em boa verdade, não se pode esperar que grandes criadores como David Bowie assumam a sua arte como um domínio formatado pelos valores de outros: as suas máscaras fazem parte de uma intransigente verdade artística.
>>> David Bowie + Madonna.