domingo, abril 14, 2013

Beethoven, séc. XXI

Uri Caine

* GULBENKIAN: Sexta, 12 Abr. 2013, 19:00 - Grande Auditório

J.L. - A temporada de música da Fundação Gulbenkian continua a proporcionar alguns maravilhosos e heterodoxos arranjos, desafiando matrizes mais convencionais, embora sem nunca perder a sua relação criativa com o vasto universo dos clássicos. Neste caso, a música de Andreia Pinto-Correia preencheu uma primeira parte que serviu de prólogo paradoxal à presença do pianista Uri Caine no palco do Grande Auditório.
De Andreia Pinto-Correia, escutámos Elegia a Al-Mu’tamid, Alfama e Xántara — a segunda peça, com Ana Maria Pinto (soprano), resultante de uma encomenda da Fromm Music Foundation/Harvard University, em estreia europeia. Há na sua música um misto de desencantado romantismo e metódica geometria que confere a cada uma das obras uma contagiante dimensão invocativa. Alfama, em particular, integra um traço de melancolia que, tal como a própria autora refere num texto do programa, não é possível dissociar de um pudico sentimento de perda. São momentos introspectivos capazes de apelar a uma partilha ritualizada, como numa cerimónia em que cada um pode encontrar a razão oculta do seu universalismo.
Beethoven (1820)
O mesmo se poderá dizer do fulgurante Uri Caine, naturalmente por caminhos bem diversos. A sua apropriação das Variações Diabelli, Opus 120, de Ludwig van Beethoven, não se limita a "transferir" a obra para orquestra de câmara e piano improvisado. Que é como quem diz: não se trata apenas de propor um novo "arranjo" (o que, convenhamos, face a uma das mais lendárias peças do património pianístico, já não seria pouco) — Caine visa a produção de uma linguagem alternativa (!) que se desloca para os espaços de improvisação do jazz, preservando e, num certo sentido, exacerbando a vocação lúdica do original.
Afinal de contas, este Beethoven para o século XXI ilustra a versátil pedagogia do pianista: de Mozart a Mahler, passando por Bach (Variações Goldberg), a trajectória de Caine faz-se de muitas e surpreendentes deslocações formais que, em todo o caso, preservam sempre o gosto pelo concerto como formato conciso de partilha e fruição. Neste caso, convém não esquecer, com o sempre notável rigor da Orquestra Gulbenkian, com impecável direcção de Joana Carneiro.

N.G.O regresso de Uri Caine ao Grande Auditório da Gulbenkian, depois de uma notável passagem na temporada passada, evocando então ecos dos últimos dias de Wagner em Veneza, traduziu-se numa daquelas raras noites que ficam na memória do que de melhor a música pode fazer: comunicar.
Joana Carneiro
Acompanhado por uma formação de câmara, magistralmente dirigida por Joana Carneiro, Uri Canie caminhou por entre as Diabelli Variations de Beethoven, procurando o seu caminho, dialogando com as notas e os tempos que ali se cruzavam, promovendo estimulantes pontes entre épocas, entre o compositor e a plateia que assim o (re)drescobria e, naturalmente, e como é já marca da sua identidade, entre a música orquestral do período clássico e outras formas do nosso tempo, sob um certo protagonismo dos espaços jazzísticos (mas sem nunca acreditar numa noção de barreira ou fronteira entre a música).

O evidente brio instrumental na execução não foi contudo o único ser maior de uma atuação em tudo irrepreensível. A noção de liberdade e o desejo de busca que Uri Caine lançou sobre as notas de Beethoven – que a orquestra e maestrina espantosamente souberam acompanhar – sublinha uma atitude de dessacralização que importa nunca apagar de um presente que sabe que inventa o futuro quando integra e escuta o que o passado lhe deu a conhecer. Tal como nos mostrou já com pontos de partida em obras de Wagner, Bach ou Mahler, Uri Caine procura o seu caminho e o seu lugar sabendo que tem uma matéria prima em mãos que pode assim transformar. E é deste ato de reflexão presente sobre o passado que, muitas vezes, a arte dá um passo em frente. Porque, tal como o mundo da ciência há muito reconheceu, a noção de “geração espontânea” é mais uma ideia abstrata que uma realidade do mundo físico.