A comédia entrou em decadência? Velha questão, que conduz a outra: a comédia que ri das convenções da própria comédia tem, ou não, capacidade de mobilizar algum público? O caso de Movie 43 merece atenção — este texto foi publicado no Diário de Notícias (4 Março), com o título 'Uma comédia fora dos eixos'.
Não é fácil apresentar uma sinopse de Movie 43 (entre nós lançado com o título bizarro, mas sugestivo, de Comédia Explícita). Digamos que se trata de um conjunto de episódios centrados em três adolescentes que tentam descobrir na Internet um filme, o tal "Movie 43", que, de tão chocante, terá sido banido de todas as plataformas: cada novo fragmento que encontram constitui uma das pequenas histórias que nos é apresentada. Histórias de quê? Pois bem, desde um casal que educa o filho através de métodos de inusitada violência moral até uma empresa que está a desenvolver um leitor de MP3 que é... uma mulher nua, passando pelo esforço demasiado empenhado de “Batman” para que o seu “Robin” consiga arranjar namorada, são histórias em que a crónica social se transfigura em delirantes exercícios de escatologia.
Digamos que é o tipo de filme fora dos eixos que convém não recomendar seja a quem for: corremos o sério risco de o interlocutor duvidar da nossa seriedade. Por isso mesmo, caro leitor, sem me atrever a sugerir-lhe qualquer aproximação de Movie 43, permita-me que lhe diga, muito seriamente, que há algum tempo não descobria uma comédia americana que, de modo tão frontal, e também tão simples, soubesse reagir contra os próprios estereótipos (nomeadamente em torno da adolescência) que têm marcado o género.
Movie 43 possui a energia sarcástica de uma ópera bufa, dir-se-ia que reescrita pela pena cruel e sofisticada do nosso Bocage. Os seus alvos principais são a representação liofilizada do espaço familiar e a redução dos mais jovens a figuras anedóticas e pitorescas. Há mesmo um episódio de uma menina, interpretada por Chloë Grace Moretz (que vimos dirigida por Martin Scorsese e Tim Burton, respectivamente em A Invenção de Hugo e Sombras da Escuridão), que vive a experiência da sua primeira menstruação num delírio absolutamente burlesco cujo alvo é, em última instância, a estupidez machista que a rodeia.
Produzido em regime mais ou menos independente, com um lote imenso de realizadores (Peter Farrelly, Griffin Dunne, Brett Ratner, etc.), Movie 43 apresenta um elenco de fazer inveja a muitos grandes produções: Kate Winslet, Hugh Jackman, Naomi Watts, Emma Stone, Richard Gere, Uma Thurman e Halle Berry são apenas alguns dos talentos que passam pelas suas histórias. Segundo rezam as crónicas, desconcertados com o resultado final, nenhum deles se mostrou disponível para participar em qualquer acção de promoção do filme. Compreende-se porquê: afinal de contas, em Hollywood e não só, o humor escatológico pode não ser o melhor factor de reconhecimento público. Também por isso, perversamente, não podemos deixar de considerar que Movie 43 contém todos os elementos necessários e suficientes para, com o tempo, se transformar num objecto de culto. Daqui a dez ou vinte anos, vai ser divertido voltarmos ao assunto. Para já, a defesa cala-se.