segunda-feira, março 25, 2013

José Sócrates no país dos “zombies”

THE WALKING DEAD
A questão televisiva de José Sócrates possui um terrível valor sintomático: não sobre o ex-primeiro-ministro ou a RTP (entidades cujas performances são obviamente discutidas e discutíveis); antes sobre a visão persecutória que, a partir do espaço mediático, tem contaminado todos os circuitos sociais — este texto foi publicado no Diário de Notícias (24 Março).

Curiosa e perturbante perversão na vida das imagens em democracia: aparentemente, para alguns cidadãos que têm assinado uma petição contra a anunciada presença de José Sócrates num programa da RTP, se alguém formular a mais simples dúvida sobre os pressupostos ideológicos e morais de tal exigência, isso é de imediato rotulado como uma manifestação militante em favor de todas as políticas que, enquanto primeiro-ministro, Sócrates pôs em prática.
A paisagem mediática portuguesa tornou-se, assim, uma experiência que não é estranha às ambiências dessa notável série televisiva que é The Walking Dead (Fox). O que a série coloca em cena é, precisamente, a decomposição de um tecido social ameaçado pela eclosão de um Mal absoluto (os “zombies”). Na sua fina inteligência dramática, The Walking Dead acaba por ter como tema nuclear o contraponto mais humano. A saber: o que é isso de uma relação humana? E também: como construir, manter e enriquecer uma relação humana? Em Portugal, parece haver cidadãos que vêem o seu país como uma arena de “zombies”: se alguma coisa se move, dispara-se primeiro e pergunta-se depois... Para eles, a existência de um sinistro programa de televisão como o Big Brother é indiferente: basta-lhes que calem José Sócrates e sentem-se logo mais felizes.
O que está a acontecer repete a triste avalancha de ideias (?) que sustentou o célebre “grandolar” contra o ministro Miguel Relvas. De facto, não se tratava de pensar o evento como uma censura ao direito de expressão do próprio ministro. Tratava-se, e trata-se, de perguntar o que está a acontecer no plano da simbologia colectiva quando uma canção ligada à defesa do direito de expressão é aplicada como instrumento prático de silenciamento (seja de quem for!).
Sócrates, idem, aspas. Só mesmo um “zombie” pretenderá que a sua gestão política foi um inquestionável mar de rosas. Apesar disso, ou precisamente por causa disso, importa perguntar: que pedagogia é essa que, além de conseguir “explicar” todos os dramas do país pelo bode expiatório mais à mão, se satisfaz com a interdição radical do discurso de um cidadão? Será que vão começar a proliferar tribos do Facebook, cada uma delas visando um ex-governante? Liguem os televisores, têm muito por onde escolher...
Como se isto não bastasse, voltamos a estar sujeitos à cobardia intelectual de alguns elementos da nossa classe política. Em ocasiões como esta, vêm para a praça pública mostrar-se muito ofendidos, mas nunca (repito: nunca!) os ouvi tecer a mais ténue consideração sobre o facto de alguns programas de televisão, filiados na obscena ideologia dos “reality shows”, promoverem todos os dias a estupidez, a ignorância e a degradação da dignidade humana. Eis um problema gravíssimo que vem do século passado, mas que tais políticos continuam a ignorar. É mais fácil demonizar José Sócrates.