GIORGIO DE CHIRICO A Comédia e a Tragédia 1926 |
I - Um dos sintomas mais insólitos da nossa crise de valores culturais é a transfiguração arbitrária da língua. Muitos exemplos vêm do "futebolês" de alguns comentários televisivos, sendo a vulgarização dos infinitos o seu mais recente desastre — há mesmo quem comece as suas considerações com disparates deste género: "Dizer que a segunda parte vai começar..."
II - Entretanto, a reconversão de alguma simbologia política tem tido uma expressão eloquente, também ela sintomática, na promoção de Grândola, Vila Morena a instrumento de interrupção dos discursos de alguns governantes, ao mesmo tempo rasurando a pluralidade de memórias que podemos associar à canção de José Afonso (incluindo, porque não?, uma esquecida versão de Linda de Suza).
III - A hipótese de cunhagem de um novo verbo — "grandolar" — é inequivocamente reveladora. A identidade (dos substantivos) ou o valor (dos adjectivos) surgem tristemente promovidos a uma lógica determinista da acção (que os verbos apostam em "descrever"). A multiplicação das mensagens corresponde, assim, a uma desqualificação generalizada das palavras: o que se diz passa a medir-se apenas pelo efeito pontual daquilo que se diz, sobretudo quando se diz em sintonia com um "colectivo" mais ou menos obrigatório, candidamente legitimador.
IV - O sentido normativo que foi atribuído às chamadas redes sociais é revelador, aliás exponenciando até ao delírio mais totalizante o lendário enunciado de Marshall McLuhan: "o meio é a mensagem". Entenda-se: não se trata de demonizar essas redes (ou quaisquer outros circuitos de comunicação/informação do mundo contemporâneo); trata-se, isso sim, de questionar a utilização das ditas redes sociais como elemento automático de validação informativa ou de justeza argumentativa — de forma absolutamente perversa, as televisões passaram mesmo a tratar "o que dizem as redes sociais" como notícia automática, supostamente neutra, transparente, não questionável.
V - Vivemos, assim, um momento de equívoca naturalização do espaço social (em grande parte induzida pelo pobre e quotidiano naturalismo televisivo), sendo o Facebook a bandeira global desse processo. O mais bizarro está na contradição ontológica que, pelos vistos, os novos militantes do social em rede ignoram: por um lado, algumas práticas políticas do Facebook (incluindo a que desemboca na promoção do verbo "grandolar") distinguem-se pela veemência com que combatem o "sistema"; por outro lado, com a sua teia planetária de infinitas ramificações, cada uma delas geradora de mais e mais elaboradas derivações económicas, o Facebook pode ser visto também como a mais feérica concretização dos poderes abrangentes da própria proliferação capitalista.
Decididamente, como previu Godard, não está fácil a vida de todos nós, "filhos de Marx e da Coca-Cola". Encore un effort...
Decididamente, como previu Godard, não está fácil a vida de todos nós, "filhos de Marx e da Coca-Cola". Encore un effort...