segunda-feira, fevereiro 25, 2013

"The Walking Dead" ou a tragédia dos vivos

A série The Walking Dead é um caso exemplar de relançamento de um género eminentemente popular — este texto foi publicado no Diário de Notícias (22 Fevereiro), com o título 'Convivendo com os zombies'.

Sabemos que, há milénios, a produção das mais variadas formas de ficção constitui um elemento visceral da vida dos seres humanos. Uma noção corrente e linear recorda-nos que o exercício da ficção (ou, se preferirem, o gosto de contar histórias) é também uma maneira de dar conta da pluralidade da experiência humana, ora reconhecendo a sua relatividade (e teremos a comédia), ora contemplando o seu desejo de absoluto (e estaremos já no domínio da tragédia).
Em todo o caso, sabemos também que a ficção não é uma mera duplicação do que quer que seja (mesmo que, todos os dias, as telenovelas e a reality TV tentem enganar-nos com os seus infinitos e pueris artifícios de “imitação” da “vida como ela é”). Contar histórias pode ser também um teste perturbante às fronteiras da própria dimensão humana. Perguntando: afinal, como definimos a nossa humanidade? Ou ainda: de que modo essa humanidade pode tocar ou até mesmo ser contaminada por factores que contrariam a nitidez original da nossa identidade?
A série The Walking Dead (de novo no canal Fox) transformou-se num belo exemplo dessa problemática. Porquê? Porque coloca em cena o zombie, um dos mais populares símbolos de ficção (cinematográfica, em particular) a ser capaz de arrastar a ideia de uma morte que, em vez de persistir inacessível “do outro lado”, coexiste connosco. Afinal de contas, no seu intratável torpor, o zombie é o “não-morto”.
Acontece que, quanto mais a série avança, mais se vai consolidando um notável labor de ficção que transcende as convenções do género. Assim, em vez de estarmos perante uma história da “humanidade contra os zombies”, assistimos a um crescendo de tensão entre os grupos humanos, sendo os zombies um pano de fundo ameaçador, mas quase decorativo.
Podemos dizer isto através de uma metáfora “económica”: os zombies são a moeda que já não tem valor, travando os humanos uma guerra para voltar a encontrar algum padrão para as suas trocas. O impacto de The Walking Dead passa por daí: a comédia dos “mortos que caminham” transfigura-se na tragédia dos vivos que não sabem para onde caminhar.