segunda-feira, fevereiro 11, 2013

Televisão, Magritte e os outros

Subitamente, uma pequena grande surpresa: um programa televisivo, a série de ficção Odisseia, consciente de que fazer televisão é também um jogo de máscaras, verdades e mentiras, construções e desconstruções — este texto foi publicado no Diário de Notícias (8 Fevereiro), com o título 'O mundo não é transparente'.

Em televisão, os modelos dominantes são gerados por uma fábrica cínica de ficções. Veja-se a “reality TV”, o Big Brother e toda a sua monstruosa descendência: monta-se um dispositivo de grosseira manipulação e chama-se-lhe “a vida como ela é”. Ou atente-se na chantagem dos “apanhados”: enganar alguém (o “apanhado”) através dos mais pueris disparates é apresentado como o máximo da euforia que a ficção pode conter.
Tempos tristes, sem dúvida. A série Odisseia (RTP1, sábado, 21h00) é uma criação concebida para estes tempos. Criada por Bruno Nogueira, Gonçalo Waddington e Tiago Guedes (os dois primeiros como actores, o terceiro a realizar), nela se consuma a inteligente desmontagem da arte de fazer ficção.
Bruno Nogueira e Gonçalo Waddington, utilizando os seus nomes próprios, vivem a odisseia que o título promete: deambulam numa auto-caravana à procura de... não se sabe bem o quê. Regularmente, a acção é interrompida por um colectivo (que inclui o próprio Tiago Guedes) que trabalha sobre a ficção a que assistimos... Além disso, há um “narrador” (Miguel Borges) que vai filosofando sobre as significações de tudo aquilo, surgindo ainda personagens diferentes, mas interpretadas pelo mesmo actor (Nuno Lopes), afinal conhecido de todos eles...
O resultado é um jogo de espelhos que expõe o quotidiano como um delírio (des)controlado. A televisão dá-se a ver como máquina perversa de verdade e mentira, numa magnífica diversificação do filão descoberto pela série de Ricky Gervais, The Office; ao mesmo tempo, deparamos com uma ambiguidade festiva que, no seu laborioso absurdo, pode fazer lembrar a herança de algumas pérolas do cinema moderno como esse filme inclassificável que é Dillinger Morreu (1969), de Marco Ferreri.
Resultado prático: um contagiante festival de máscaras que, como um quadro de Magritte [imagem: A Reprodução Interdita (1937)], desafia escalas e cenas, realismo e verosimilhança. E não há nada mais precioso que um programa de televisão que nos ajuda a perceber que uma narrativa não é feita para “confirmar” a transparência do mundo, uma vez que tal transparência nunca existiu. Serviço público? É isto.