Fui dos cépticos em relação à possibilidade de tratamento da figura de Alfred Hitchcock num filme "biográfico". O certo é que, apesar de todas as suas limitações, o Hitchcock, de Sacha Gervasi, com Anthony Hopkins, contraria esse cepticismo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (7 Fevereiro), com o título 'Actores no papel de actores'.
O filme de Sacha Gervasi sobre Alfred Hitchcock, com Anthony Hopkins no papel central, parte de um pressuposto televisivo, típico de produções como A Dama de Ferro (2011), em que Maryl Streep compunha a figura de Margaret Thatcher: a sobrecarga des “semelhanças” entre actor e personagem constituiria uma espécie de “ganho” artístico e histórico. Ora, mesmo sem menosprezarmos o know how clássico de Hopkins, essa é a dimensão menos importante do filme. Como pouco importante e, sobretudo, redundante parece ser o facto de Gervasi insistir em “visualizar” o fascínio do realizador pela figura de Ed Gein, o “serial killer” que serviu de ponto de partida ao romance de Robert Bloch, a partir do qual Hitchcock faria o seu Psico.
Se Hitchcock consegue escapar ao convencionalismo de tais matrizes, isso deve-se à consciência aguda de que o cinema pressupõe um labor específico que vai desde as ideias mais abstractas até à necessidade de lidar com matérias muito concretas como são os actores, os cenários, as peças do guarda-roupa, etc. Nesta perspectiva, o filme de Gervasi contraria a visão pitoresca, de raiz televisiva, do próprio trabalho cinematográfico. Não por acaso, um dos seus trunfos está no elenco de actores que, inevitavelmente, estão a interpretar... actores: Scarlett Johansson (recriando Janet Leigh), Jessica Biel (Vera Miles) e, sobretudo, James D’Arcy (Anthony Perkins) conseguem colocar em cena o misto de incerteza e vulnerabilidade que as tarefas de interpretação podem envolver. E isso não deixa de ser uma ironia que importa valorizar: sendo Hitchcock muitas vezes apresentado como um criador com uma visão meramente instrumental dos seus actores, este filme propõe uma bela dúvida metódica sobre a sua “indiferença” humana.