quinta-feira, fevereiro 07, 2013

Gulbenkian: novas encruzilhadas musicais

Risto Nieminen
Não será preciso entrarmos em grandes elaborações estatísticas para reconhecermos que a oferta musical na Fundação Calouste Gulbenkian está a passar por um metódico processo de reconversão. Três sintomas globais podem sinalizar tal processo:
1 - a diversificação do programa, não apenas combinando o "velho" e o "novo", o "clássico" e o "moderno", mas em última instância dispensando a lógica mais maniqueísta que tais classificações podem atrair;
2 - o cuidado posto na revelação de novos intérpretes (no contexto português), contornando a "obrigação" de conceber a programação como uma amostragem regular do mesmo elenco de "principais" e "secundários";
3 - enfim, a própria organização prática do calendário (por exemplo, aumentando de forma significativa os concertos no horário das 21h00).
Não se trata, obviamente, de rasurar a imensa riqueza do passado, por certo ligada a contextos culturalmente diversos (inclusive do ponto de vista económico). O certo é que cada vez são mais nítidas as marcas do delicado e incisivo trabalho de Risto Nieminen, director do Serviço de Música da Fundação desde Abril de 2009 — aliás, a conjuntura aponta para novas encruzilhadas, até porque a temporada de 2012/13 corresponde também ao tempo de passagem de testemunho entre os maestros Lawrence Foster e Paul McCreesh. Dois concertos recentes contêm alguns elementos tão interessantes quanto esclarecedores.

Karita Mattila
ORQUESTRA GULBENKIAN
PAUL MCCREESH (maestro)
KARITA MATTILA (soprano)
Sexta, 01 Fev 2013, 19:00 - Grande Auditório

* Luís de Freitas Branco - A morte de Manfred
* Richard Strauss - Quatro últimas canções
* Edward Elgar - Sinfonia nº 1, op. 55

Compostas em 1948, as Quatro Últimas Canções de Richard Strauss (estreadas em Londres, em 1950, nove meses decorridos sobre a morte do compositor) possuem um apelo trágico e paradoxal: nelas deparamos com uma celebração terminal, dir-se-ia um luto antecipado, do lied romântico que tão modelarmente representam. Ouvi-las na delicada interpretação da finlandesa Karita Mattila correspondeu, afinal, a uma revisitação de um tempo, também ele, de muitos cruzamentos e agonias — na trajectória de Strauss, o processo criativo envolve, aqui, tanto a proximidade afectiva da mulher (no seu "exílio" na Suíça) como os sinais ainda muito sensíveis das convulsões da Segunda Guerra Mundial.
Daí também a pertinência do enquadramento histórico-musical: a peça de Luís de Freitas Branco, admirável pranto humanista em 10 mágicos minutos, e a sinfonia de Edward Elgar, por certo influenciada pela dramaturgia de Mahler, são, afinal, quase contemporâneas (1906 e 1908, respectivamente). Dir-se-ia que, através delas, e da distância a partir da qual nos convocam, podemos ler os sinais premonitórios de um mundo que entraria num processo de clivagens cada vez mais cruéis, até ao desencanto — e ao desejo de sobrevivência — que as canções de Strauss descrevem.
Neste video, podemos escutar Karita Mattila numa das canções de Strauss (Beim Schlafengehen), num concerto de 2005, em Londres, com a orquestra da Royal Opera House conduzida pelo maestro Antonio Pappano.


* * *
Viktoria Mullova
VIKTORIA MULLOVA (violino)
MATTHEW BARLEY (violoncelo)
JULIAN JOSEPH (piano)
SAM WALTON (percussão)
PAUL CLARVIS (percussão)
Quarta, 06 Fev 2013, 21:00 - Grande Auditório

* Músicas do Mundo: The Peasant Girl
> John Lewis, Bratsch, Béla Bartók, Zoltán Kodály, Weather Report, Matthew Barley, Du Oud.

Violinista de excelência, estrela internacional entre os grandes intérpretes nascidos na Rússia, Viktoria Mullova ilustra uma particular postura de desafio artístico, inerente a outros nomes da cena musical "erudita" (recorde-se, no canto, o caso exemplar de Anne Sofie von Otter). Que é como quem diz: para ela, a "segurança" do repertório clássico pode e deve ser testada através da contaminação e confronto com outras linguagens, por assim dizer, culturalmente mais pagãs.
O projecto The Peasant Girl aí está, como ilustração exuberante de tal atitude. Sob a direcção do marido de Mullova, o violoncelista Matthew Barley, o espectáculo combina memórias da música popular cigana, tal como ficaram inscritas nas composições de Bártok ou Kodály, com elementos colhidos na paisagem plural do jazz — Weather Report surge como referência central para todas as fusões —, seguindo por uma via de crescente derivação jazzística. Pormenor nada secundário no sucesso do empreendimento: a presença do pianista Julian Joseph, senhor de uma subtileza rara na relação com as teclas.
Eis um exemplo de recriação dos Weather Report num registo de 2010, do Holland Festival, em Amsterdão: o conjunto interpreta um tema de Joe Zawinul, Pursuit of the Woman with the Feathered Hat.