FERNANDO BOTERO Padre a descansar 1977 |
Vamos ouvindo alguns comentários sobre os jogos de futebol que mais parecem assumir-se como sermões iluminados para repor a "justiça" neste mundo e no outro... Como foi possível chegarmos a tal estado de coisas? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (18 Janeiro), com o título 'Ética do assobio'.
Podemos discutir o facto de um alto dirigente político ou religioso emitir determinado ponto de vista sobre a colectividade. Podemos discutir, podemos discordar, mas reconhecemos-lhe legitimidade, porventura autoridade, para se expressar desse modo.
Ora, semelhante vocação não pertence às televisões: apesar da sua enorme abrangência social (ou precisamente por causa dela...), as televisões não são partidos nem igrejas de coisa nenhuma. Esta semana, a questão reapareceu, de forma dramática, através de uma frase infeliz de um comentador de futebol (Pedro Henriques, Sport TV) durante o Manchester United – Liverpool.
Em causa estava o facto de os adeptos do United assobiarem Suarez, do Liverpool, cada vez que este tocava na bola. Comparando o comportamento de ingleses e portugueses, o comentador achou por bem elogiar os primeiros. Porquê? Os portugueses são dados a protestar contra os jogadores da sua equipa, enquanto os ingleses visam os “outros”: “(...) assobiar os adversários é aceitável; assobiar os jogadores da própria equipa é inaceitável.”
Como? Que se passa (na televisão e no país) para que um comentador de uma coisa tão básica como um jogo de futebol se assuma como pastor de almas, tecendo discursos normalizadores sobre... assobios? A situação enreda-se um pouco mais se considerarmos que Suarez estava a ser visado por, há algum tempo, ter proferido comentários racistas contra um jogador do Manchester (Evra)... Os assobios dos adeptos do Manchester são uma coisa boa, mas os do Liverpool seriam, então, inadequados? E quando é que o assobio passou a ser pretexto de sermões sobre a coerência moral de todos os adeptos?
O comentador precipitou-se? Talvez. Em qualquer caso, em sua própria defesa, vale a pena evitar que a precipitação se confunda com irrisão argumentativa. Será que não há limites para a ideologia “justiceira” com que insistem em encenar o futebol? Agora, além de resultados “justos” e “injustos”, também há “justiça” e “injustiça” nos assobios? Por favor, não nos tratem como crianças tontas ou, um dia destes, ainda nos pomos a assobiar.